Page 167 - Revista da Armada
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Conheci o engenheiro Giraldes a bordo do aviso engenheiro, de motu proprio. saltou para a estrada e,
4!Pedro Nunes)) , Eu era o oficial imediato, primeiro-te- cautelosamente, arma engatilhada e pronta a dispa-
nente ; ele, o chefe do serviço de máquinas, também rar, encaminhou-se para o local. Nós, convencidos de
primeiro-tenente, mas muito mais antigo que eu. que era outro gato, dirigíamos-lhe chalaças em voz
Como é sabido, o imediato é o substituto do coo alta. Ele bem fazia pchiu ... pchiu ...• mas nós respon-
mandante nos seus impedimentos, e seu braço direi- díamos com gargalhadas. Foi então que ele, em calão
to no dia a dia da vida de bordo. Por isso é. natural- puramente nortenho, gritou furioso : Calai-vos, gaita!
mente, o oficial embarcado mais antigo a seguir ao co- Esta frase viria a ficar célebre durante o resto da via-
mandante. Quando isso, excepcionalmente. não gem, sendo repetida e propósito de tudo e de nada.
acontece, podem gerar-se situações delicadas, e por Entretanto, o bicho tinha fugido e o engenheiro,
vezes até conflitos de competência, que prejudicam desalentado, regressou à camioneta invectivando-
o bom ambiente que deve reinar a bordo. Bem basta -nos e afirmando: Bolas para vocês, desta vez era
a vida dura do mar. .. mesmo uma onça!
No caso presente, porém, nada disso aconteceu, Como todos....nós, marinheiros, sabemos, a bordo
não obstante termos navegado muito, incluindo uma não pode haver segredos. Sabe-se tudo, até as intimi-
viagem de instrução de seis meses, com um curso de dades de cada um ... O nosso amigo Giraldes dormia
• guardas-marinhas, mal alojados, e consequentemen- pouco, tinha insónias. Andava muitas vezes, alta noi-
te causando certo granel na vida de bordo. te, a passear na praça de annas, para cá e para lá, a ver
É verdade que o facto de termos tido a sorte do co- se lhe vinha o sono. Dizia e le que com o calor e o chei-
mandante, capitão-tenente João Pais Baptista de ro abafado que reinavam lá em baixo, era impossível
Carvalho, ser um homem excepcional, muito concor- dormir. Quando um de nós aparecia por ali, ao sair de
reu para que tudo corresse o melhor possível. quarto, aproveitava o ensejo para conversar um pou-
Abro aqui um parêntesis para mencionar os res- co e beber um copito do tinto - unica bebida de que
tantes oficiais: primeiro-tenente Joaquim Gomes gostava -para refrescar ...
Trindade, segundo-tenente médico naval Henrique Outra das suas facetas curiosas era o jeito natural
de Oliveira Alves, segundos-tenentes Nuno Ximenes para discursar. Uma vez, em Luanda, o governador,
Teixeira de Aragão, Horácio José da Silva Oliveira e comandante Lopes Alves, jant ou a bordo com varios
Jorge da Silva Forte e segundo-tenente de adminis- convidados. Aos brindes, o comandante João Pais,
tração naval Cupertino Ferreira Guerra. que era avesso a falações, limitou-se a agradecer a
Voltando ao engenheiro Giraldes, direi que ele era presença do governador e acompanhantes, declaran-
titular de uma personalidade muito interessante e do que já que ele não gostava, passava e palavra ao
bastante versátil. engenheira Giraldes, que era um ás para isso.
Alguns anos de serviço na Guiné, fizeram dele um Foi um verdadeiro sucesso! O brinde foi curto,
caçador muito batido no mato, como ele próprio dizia. teve sumo e muita graça. O próprio governador que,
E como a bordo não havia caça, para não perder o na minha opinião, era, ao tempo, o melhor orador da
dedo. sentava-se horas e horas à proa do navio, a na- Armada, não se cansava de o elogiar, dizendo que há
vegar, à espera que os peixes voadores saltassem da muito tempo não ouvia ninguém falar tão bem.
água e voassem para os abater com um tiro certeiro. E, para terminar esta evocação de um bom cama-
E. deve dizer-se em abono da verdade, raramente fa- rada - já lá vão 35 anos sobre essa viagem - resta-
lhava ... -me afirmar que esta comissão de embarque foi a
mais agradável que fiz em tod.a a minha vida de mar.
Uma noite. precisamente na Guiné. vários oficiais
A prová-lo, quando encontro algum elemento dessa
do navio acompanharam-no numa caçada pelo inte-
guarnição, oficial, sargento ou praça, é um nunca
rior. Íamos empoleirados numa camioneta de carga,
mais acabar de boas recordações e de saudades ..
aberta, e éramos acompanhados por dois indiÇJenas
que. como se sabe, têm olhos de lince para detectar
a caça. A certa altura. um deles bateu no tejadilho,
que era o sinal combinado para o condutor parar a ca-
mioneta. Apontou para uma árvore à beira da estra-
da, na ramagem da qual se viam luzir dois olhos como
se fossem lanternas acesas. A ideia generalizada era
de se tratar de uma onça. mas o engenheiro garantiu
que era apenas um gato bravo. Nós acicatávamo-lo,
contrapondo que ele tinha medo de ir ao bicho ... De-
clarando que não percebíamos nada daquilo, apeou-
-se e calmamente dirigiu-se para debaixo da árvore fo-
cando o bicho com o farolim de caça que levava atado
na testa. Apontou a arma e disparou. Nós vimos um
vulto cair. e le abaixar-se, apanhá-lo e. triunfante. ati-
rá-lo para dentro da camioneta, exclamando: Eu não
dizia que era um gato?! M.doVale,
Mais uns quilómetros percorridos, nova paragem c/a/mo
com o guia a apontar outra arvore e mais dois olhos
a luzir, desta vez muito maiores e mais brilhantes. O ••••••••••••••••••••••••••••••
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