Page 156 - Revista da Armada
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Antologia do Mar
e dos Marinheiros
Cesário Verde
esário Verde nasceu cm Lisboa. na freguesia da Mada- Pelo cap.-frag. CristóvBO Moreira
lena, cm 25 de Fevereiro de 1855. Filho de um comer-
ciante de ferragens estabelecido na Rua dos Bacalhad-
Cros, seguiu depois da escola primária o destino previsi-
vel c no seu tempo costumado: o balcâo da loja de seu pai, que
ainda por cima embirrava com literaturas. Nada, portanto, pa-
rccia ilugurio de que no jovem Cesário dasabrochassc a alma de
poeta. E não um poeta qualquer, mas trazendo um sopro reno-
vador, isolado na literatura portuguesa: o «principal representan-
te da poesia naturalista», no dizer de José Régio, que nele admi·
rava «a comoção púdica c sóbria, a sensibilidade profunda c se-
nhora de si, li bela imaginação de observador amante». Admira-
çilO que João Cabral de Melo Neto leva ao extremo de canside-
rarCesário Verde como .. o maior de todos».
Tendo frequentado num só ano lectivo (1873·74) o Curso Su-
perior de Letras, ali conhcceu Silva Pinto, o amigo que para
sempre lhe ficaria dedicado. e a quem se deve .. O Livro de Cesá- Cesário Verde-alini·
rio Verde» -o volume em que, após a morte prematura do poe· CafOIQ qut do pOtra St
ta, levado pela tísica com apenas 31 anos. reuniu as poesias quc conhece (fO/o do Sl'r·
ele deixara dispersas por jornais c revistas. e em que se estreara ~içQ de Do<:uml'ntação
aos dezoito anos. no «Diário de Notícias», pela mão de Eduardo do «Didrio de NO!í·
Coelho, director do jornal. que tinha sido caixeiro na loja do pai cias»).
de Cesário.
Distantes ainda da elevaçiio da poesia do futuro Cesário Ver· de Cesário Verde», apenas surgiu em 1901, ao romper do nosso
de, esses primeiros versos valeram ao jovem a crítica implacável sl:eulo. que o consagraria como um poeta «quase sem preceden-
de Ramalho Ortigão, que mais tarde se IOrnaria seu amigo, mas tcs ncm continuadores». que «renovou completamente a cstilís-
que nas .. Farpas» o acusou de imit:u Baudelaire, acabando por tica tradicional da nossa poesia», e que «consegue valorizar poe-
lhe desejar que as suas observações «contribuam para que conti- ticamcnte o vocabulário e o tom de fala mais correntios na lin-
nue a ilustrar o seu nome tornando-se cada vez meno~ Verde e guagem coloquial urbana. embalando o leitor num ritmo que
mais Cesário». E assim veio li acontecer. ao longo dos seis anos ondula entre a atenção ao pormenor e um abrir de horizontes,
em que para tanto lhe restaram o ânimo e as forças. A parlir de entrc a sátira ou a degradação, que nos oprimem, c um relance
1882, a doença do poeta foi-se agravando; e dois anos depois, dc beleza real, que nos expande» (<<História di\ Literatura Portu-
o Dr. Sousa Martins (o ilustre médico que a crendice popular guesa". de António José Saraiva e Óscar Lopes).
ainda hoje venera, diariamente, junto à sua estátua no Campo T ralando-se dc um nome que nesta galeria temos por indis·
de Santana), considerou perdida a vida de Cesário Verde. De pensável. ainda que pacta marítimo n:io seja. abrimos a breve
nada lhe valeram os ares puros de Caneças, onde foi viver, até antologia de Cesário Verde com o sarcasmo de «Heroismos»,
ao desiludido regresso a Lisboa; no Lumiar scus breves dias se que ante a fUria do mar suas fraquezas consentem; fomos buscar
acabaram, e com eles a esperança triste que lhe restava, expres- depois. à sua condição de poela urbano. versos onde ele se ser·
sa numa das ultimas cartas que escreveu: .. Curo-me? Sim. tal- ve. aqui c ali. de imagens de navios, portos ou marujos; e por
vez. Mascomo fico eu? Um cangalho, um canastrão. um grande fim. sem que de nada disso fale, como excepçiio fugida à regra.
cesto roto: entra-me o vento, entra-me a chuva no corpo escan- não resistimos à tentação de transcrever a delícia de dois peda·
galhado». ços de .. Num Bairro Moderno», em que a Lisboa de 1877 apare·
Cesário Verde morreu a 18 de Julho de 1886. sem a alegria cc retratada no lirismo desses episódios que, mais do que uma
de ter visto publicado um livro seu - esse que Silva Pinto iria evocação distante. nos sugerem uma presença, actual e humana.
editar no ano seguinte, apenas duzentos exemplares que fez dis- nestacidadequc Cesário Verde cantou,
tribuir «pelos parentes, pelos amigos e pelos admiradores prova- ............ . massa irregular
dos do poeta». A primeira edição, para o mercado. de .. O Livro com prl:dios sepulcrais, com dimensões de montes.
De «O LIVRO DE CESÁRIO VERDE»
(1887)
HEROíSMOS
EUlenlO muilO o mar, o mar enorme, Eu temo o largo mar rebelde, informe,
Solene, enraivecido, lurbulento, De vítimas famélico, sedelllo,
Erguido em vaga/liões, r!lgindo ao vento; E creio ouvirem cada seu/amemo
O mar sublime, o marque mmca dorme. Os ruídos d/1m lIímulo disforme.
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