Page 392 - Revista da Armada
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francês, onde pede a  quem a  encontre, que a  sele e   de Zeebrugge para lhe passar uma barba, Mas porquê
         se  identifique  para  poder  ser  recompensado  da   este exercfcio?
         despesa.                                               Tudo começa quando, no princípio do século xvn,
            A pequena garrafa é bem rolhada e aí vai pela bor-  na Flandres. a antiga e próspera cidade de Bruges foi
         da fora.  O comandante tem consciência de que está   privada do acesso ao mar, isto é, quando um canal foi
         a  transgredir uma regra de séculos. Sabe bem que a   cavado em dírecçAo a  Ostende.  Todavia,  ao  fim  de
         garrafa foi  sempre o  último recurso para  transmitir   mais de dois séculos, constatou·se que esta ligação era
         uma mensagem quando a  TSF ainda não era nascida    insuficiente para que se efectuasse, com a regularida·
         ou quando esta, já adulta, não funcionava. A Ordenan-  de desejada, o escoamento do tráfego marítimo. O en·
         ça do Serviço Naval, era bem clara na sua edição de   genheiro Maere d 'Aertrycke, em 1876. lança,  então,
                          0
         1932. O artigo 712 rezava assim: .Quando se avistar   a  ideia de Bruges porto de mar, divulgando um pro-
         uma garrafa flutuando, o comandante deverá parar o   jecto onde se previa a  criação de um porto artificial
         navio e mandá-la apanhar. Se contiver um pedido de   que servisse aquela cidade. O rei Leopoldo II apoia o
         socorro, tomá·lo·á em consideração, se tiver sido lan-  projecto e, em 1895. o parlamento vota favoravelmen·
         çada para estudo de correntes, deverá dirigir o respec-  te a "Convenção das instalações mar1timas de Bruges".
         tivo aviso à  entidade interessada nesse pedido».   Os trabalhos começam em 1896 e  a  peça fundamen·
            Conclue·se, portanto, que uma garrafa deitada ao   tal deste importante complexo é um molhe com 2487
         mar só poderá conter um pedido de socorro ou ser des·   metros de comprimento. Em 27 de Julho de 1907 o rei,
         tinada ao estudo de correntes. Como o  caso não era   a bordo do iate Albert, em companhia do principe AI·
         nenhum destes, o comandante cometeu uma falta que   berto e  da princesa Isabel, inaugura solenemente as
         só hoje, humildemente, confessa.                    novas instalações portuárias.
                                                                Cinquenta anos depois, um outro príncipe Alber·
            Mas,  a  bordo,  levantou·se logo  uma  académica,
         mas  muito acesa, discussão. KA  garrafa nunca mais   to, num palanque situado naquele mesmo molhe, roo
                                                             deado de numeroso séquito militar e  civil, recebe as
         chegará ao seu destino., diziam uns.  OutrOS aIuma-
                                                             saudações das equipagens dos dragaminas belgas. ho-
         vam que, mesmo que aterrasse, não seria detectada.
                                                             landeses, franceses e portugueses, que se juntam pa·
         Havia ainda quem afirmasse: uE  não se partirá nas
         rochas.?                                            ra se associarem a  tão importante comemoração. As
                                                             16.45h, 80 passar defronte do molhe, dão-se, no tlSan·
            A maioria era pessimista. Isto porque nunca tinha
                                                             ta Cruz., os vivas da Ordenança. Depois a  formatura
         sido feita uma estaUstica para saber quantas de 100
                                                             desfaz·se. A flotilha portuguesa segue para o norte a
         garrafas lançadas ao mar chegavam ao seu destino.
                                                             fim de continuar o seu programa de exercícios, agora
         Ainda estávamos nos anos 50 e as sondagens não es·
                                                             com a marinha Inglesa. Durante vários dias, se lançam
         tavam na moda. Só se podia contar com a intuição de   e  se metem dentro as rocegas. Numerosas vezes se
         cada um, nada mais.
                                                             fazem estas manobras e ainda outras, quando as ava·
            O comandante era, naturalmente, de opinião que   rias vêm complicar ainda mais o  sistema.  As  tantas
         a  garrafa chegaria a  uma praia,  alguém a  apanhava
                                                             é  altura de despedida, os ingleses ficam no seu país
         e a partiria para lhe retirar a carta. Depois ia aos CIT   e  os  portugueses regressam ao Tejo.  Segue·se· uma
         lá da terra, comprava o selo adequado e colocava·o no   viagem sem história, e, quinze dias depois, os navios
         canto superior do envelope. Por fim, terminava a ope-  chegam a Lisboa. A bordo ficam os homens de serviço.
         ração introduzindo a carta no marco do correio. Tudo   Os outros vão para terra para, ansiosamente, ir estar
         muito simples.                                      com a  famflia. O comandante do tlSanta Cruzll  é  um
            Como nAo o acreditassem, o comandante forçou a   deles. Ouando chega a casa a  mulher diz-lhe: ItAinda
         nota. uPois bem, quem quiser apostar que o faça.  Eu   hoje recebi uma carta de Zeebrugge.» O comandante
         aguento qualquer parada. E, mais, aposto um contra   examina  o  envelope,  onde  alguns  sinais  de  água
         dez, isto é, se a carta chegar ao seu destino recebo um   denunciam o  meio  de transporte  utilizado.  A  carta
         conto de reis;  se nAo  chegar, pago, oiçam bem, dez   deveria  ter-se aberto com a  humidade,  pois  dentro
         contos!»                                            trazia um pequeno papel, escrito numa letra incerta,
            Houve logo vários fregueses interessados em ex·   num idioma idêntico à lIestranha Ungua que ninguém
         torquir, delicadamente, ao teimoso comandante, umas   entende •.
         boas dezenas de milhares de escudos. Ninguém per·      Nele  se lia que a  garrafa tinha sido encontrada
         cebeu que a aposta continha uma perigosa armadilha:   numa pequena praia holandesa. O achador que nAo
         o comandante só podia ganhar, jamais poderia perder.   queria nada pelo selo, dizia ainda que tinha tido um
         Porquê? Porque se a  carta chegasse ele ganhava; se   grande prazer em satisfazer o pedido. O nome não se
         nAo chegasse, poderia sempre dizer, mesmo que já se   decifrava. Não trazia morada. O seu gesto tomou·se
         tivessem passado dez ou vinte anos, que nada justifi·   mais  valioso com o  anonimato. Com o  atraso de 33
         cava dizer que ela não Chegaria. De facto era indispen·   anos, aqui fica o  muito obrigado.
         sável marcar um limite de tempo o que nAo tinha sido
         feito.
            Para prestígio das funções. o comandante revelou
         então aos seus contra ventares o sarilho em que iam                               A.  Estácjo dos Reis,
         meter,se e, assim, terminou a  académica e  prolonga·                                            CMG
         da discussão. Prolongada também foi a caminhada da
         coluna de dragarninas até se aproximarem do molhe   **************

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