Page 23 - Revista da Armada
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Feliz Ano Novo!



                           Kung Hei Fat Choi!





         ervira empenhadamente a sua  Pátria. como valoroso militar,   Não queria com isto dizer que não era também um entusiasta da tão
         durante anos, MI tempos idos, ainda jovem. Após a passagem à   exótica, diversificada, rica e racional cozinha tradicional chinesa, mas o
     Ssituação de disponibilidade, optara por se deixar ficar pelo   hábito era mais forte! ...
     Extremo  Oriente,  região  onde  desempenhara  ii  sua  última   No correr dos meses, annazenava cuidadosamente, na  despensa,
     missão.                                                algumas postas, mesmo de qualquer magro b.lcall'l.lU, juntamente com
       Escolhera  Macau, situada no del!.1  do rio das Pérolas,  p.1m  residir e   vários quilos do tubérculo querido, a batata, por ali mais rara e pouca
     viver, e, como forma de vida, conseguiu arranjar um emprego modes-  apreciada.
     to,ligado indirectamente à Administração POrtugues.l no território.   Habitualmente guardava uns dias de férias,  p.1ra, no  final  do ano,
       Tal como alguns dos portugueses, que, à sua semelh.lnÇl, se decidi-  gozar a quadra  natalícia  na  companhia da  fanulia de sua mulher, em
     ram a permanecer nesse local. constituíra família, contraindo matrimó-  plena China, tanto mais que os  poucos parentes seus, ainda  vivos, se
     nio com uma oriental.  oriunda do sul da China e de arreigados hábitos   encontravam ausentes, bem distantes,  no continente europeu, na
     chineses.                                              Pátria-mãe.
       Anualmente, desde a altura em que, de ambas as partes, portugue-  Na  véspera ou antevéspera do dia 25 de Dezembro, carregava  zelo-
     sa  e chinesa,  passara a ser pennindo,                                        s.1mente o seu automóvel com alimen-
     transpunha,  via de regra, uma a duas                                          tos  condizentes  com  a época,  ou
     vezes, as portas do cerco, ténue fron-                                         sejam, um pequeno fa rdo de baca-
     teira, para  visitar os familiares mais                                        lhau, uma saca  de batatas, os tempe-
     chegados de sua  mulher, que tTab.1-                                           ros  indispensáveis (bom  vinagre e
     lhavam e habitavam em Cantão, gran-                                            azeite de baixa acidez e de primeira
     de província da nação chinesa,  situíl-                                        qualidade), alguns litros de um vinho
     da  ali  mesmo ao  lado, como  que                                             generoso, que, vencidos alguns obstá-
     numa continuidadc e permissividade                                             culos, conseguia  sempre arran~1r p.lra
     agora tão franca, ITh1S outrora tão limi-                                      o efeito, provenientes de uma  ou
     tada, quase impossível.                                                        outra lavra particuLlr, da sua sempre
       Em Macau, passara frágeis  momen-                                            saudosa e longínqua Beira interior.
     tos,  em  que a soberania portuguesa                                             Depois de viajar desde o alvorecer,
     correu sérios riscos, como aquando da                                          percorridas algumas centenas de qui-
     invasão da  China  pelos japoneses e                                           lómetros, atravessados  múltiplos  bra-
     dos bomb.lrdeamentos a MaG1U, como                                             ços do rio das Pérolas e infindos arro-
     ainda o dcmonstram as ruínas da bela                                           zais, chegava,  ao  pôr do sol, à aldeia
     catedral de S. Paulo, durante o pcriodo                                        de sua  esposa,  envolvida num  ambi-
     de lutas renhidas entre facções  milita-                                       ente sereno, campestre,  tipicamente
     res chinesas nacionalistas e comunis-                                          oriental.
     tas, até aos conturbados dias do após o                                          No  percurso, em curtas paragens,
     25 de Abril de 1974.                                                           aproveitava  para visitar multi pios
       Afinal, Macau  e a sua  população                                            mercados, quase sempre realizados ao
     venceram  pelo querer e determinação, mantendo-se, como secular-  ar livre,  com as bancas e estendais completamente recheados de  pro-
     mente, já para cima de quatro séculos, iguais a eles próprios, num con-  dutos regionais, de natureza animal e vegetal, desmistificando, de uma
     vívio étnico ímpm, de confluência de dois povos, com tradições e cos-  fonna  peremptória, os  rumores, que corriam  em  Macau, quanto ii
      tumes tão diferentes,  fazendo  plenamente jus ao  título atribuído a   carência de alimentos na China, lendo mesmo constatado a existência
      Macau, de "Cidade do Santo Nome de Deus, não há outra mais leal",   de tudo o que era comestível, com aspecto bastante convidativo e de
     datado desde o tempo da  ocupação de Portugal, nos reinados dos   radiante fTescura, ou, melhor dizendo, de quase tudo!...
      Filipes de Espanha.                                     Do fiel amigo é que nem sombra! ...
       O Natal aproximava-se célere e, embora os hábitos e usos locais fos-  Por isso suspirou aliviado quando se sentou à mesa (não acocorado
     sem bem distintos dos seus, pressentia-se no ar um sentimento ainda   no chão,  à  moda oriental  antiga), oferecendo encorajadora mente a
      meio encoberto e dissimulado, de que se avizinhava uma época do ano   todos os  presentes e deleitando-se regaladamente com o saboroso
     singular e importante, não tanto pelo facto  de se tratar do período   bacalhau, esse bendito peixe, qu.11  pitéu que nunca  pudera dispensar
      natalício, que tão representativo era  no Ocidente e para OS ocidentais,   na sua ceia de Natal, cumprindo, assim, um cerimonial, na observância
      mas pela vinda breve do Ano Novo Lunar Chinês, tão intensa e alegre-  plena da pura tradição portuguesa, indo ao encontro do seu intimo
      mente festejado,  nessas paragens,  pelos nativos, que sempre ardente-  como portugués de gema.
    . mente o desejavam, como oportunidade de conseguir dos deuses bons   Desta  vez, estava disposto a comer, excepcionalmente, com dificul-
      auspícios, num constante renovar de esperanças e de crença profunda   dade e como recurso, auxiliado pelos famosos "fni-c/ri"  ("pauzinhos"),
      numa  vida  bem  preenchida e querida, tal  como noutros pontos do   pois que se esquecera, em sua casa, da  faca  e do garfo,  utensílios que
      Globo.                                                n.10 figuram, ou só raramente, nos lares chineses.
       Cerca  de trés décadas haviam decorrido, em  que se encontrava   O mais importante de tudo e que o fazia  vibrar novamente,  nesta
      ausente do seu  torrão natal, mas, em todo este tempo, pouco ou nada   qu.ldra  festiva, como qualquer um do mais comum dos portugueses,
      se deixara  influenciar pelos orientais, sendo apenas conhecedor de   era a presença, bem real, do "fiel amigo" e da gU.1miçãO apropriada.
      pequenas expressões do dialecto cantonês. Quanto à alimentação, con-  Como o seu escasso vocabulário de linguil chinesa não lhe JX'rffiitia
      feccionava  esmeradamente,  no seu dia  a dia, pratos  regionais,  típicos   traduzir e transmitir Feliz  Natal, avançou  ous.1damente, perante o
      da apetitosa culinária nacional, que, a ele, tanto lhe agradava, n.lO con-  esp.lnto dos intervenientes, com os votos det.erminados, por enquanto
      seguindo dispensá-la, embora, em determinadas ocasiões, tivesse difi-  ainda inoportunos e algo antecipados:
      culdade em executar as refeições com  a precisão conveniente, dada a   "KulIght'i fnl clwi"!, que é como quem diz: "FELIZ ANO NOVO'.  .t
      impossibilidade de obter localmente os artigos necessários ou os condi-
      mentos adequados, mas tentando respeitar, a todo o custo e o mais                              MIIrqlll.'S Rnbafo
      possível, as caracteristicas da gastronomia lusa.                                                  CTENMN
                                                                                     ItEVISTA DA AItMADA • JANEIRO 93  21
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