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HIsrÓRIAS DE MARINHEIROS /127
sta história tem raízes longín- deslisou, de novo, agora para o rância de um corpo musculado. va-se-Jhe um funcionário digno,
quas. Corneça por uma velha seu lugar autêntico, numa espe- Não se sabe se qualquer deles de difícil acesso.
E amizade. nascida entre estu- rança ele salvação. chegou a dobrar o Cabo T ()f'Jl)efl- Mas, inexoráveis, os ponleiros
dantes, na década de vinle, no O mestre, consultou de novo a IOSO do SV ano - naquele tempo a não deixavam de rodar. Num de-
liceu Sá de Miranda, em Braga. caderneta e intimou, agora: barreira intransponível dos cábulas. sespero, resolveu tentar o impos-
Era esta uma academia alegre - Número 10! ... Mas a vida, com os anos a cor· sível. Largando as bagagens, il
e folgaza, onde sobressaiam al- Morais, sempre solícito, logo rer, tinha que ser vivida. Cada marcar o lugar, saíu da fila e diri-
guns rapazes de personalidade infonnou, desta vez com verdade: um seguiu o seu destino. giu-se ao agente. Explicou as suas
singular. • falta, senhor doutor! ... O Barrigas, numa tradição de razões. Chegado do Brasil, onde
Um, de recordar, era o Morais, O mestre, olhando a carteira, famnia, lá foi para o Brasil. E o estivera anos, tinha um comboio
um velho repelente. Sempre de apercebeu-se do logro, e apon- Peitaças, chegada a hora do ser- para o Minho, que perderia, se
capa e batina, já velhas, roídas tando a dextra intimativa ao viço militar, foi recrutado para a não fosse despachado com lxevi·
pelo tempo, era o protótipo do Morais, exclamou: Marinha. Aqui cumpriu exem- dttde. Acrescia que o pai, já idoso,
cábula fedorento, na adjectivaçào - Então, venha cá o senhor! ... plarmente, esquecidos que estava gravemente doente, na imi-
dos mestres, só eles, decerto, sen- Apanhado, por fim, o Morais, tinham sido já os devaneios pre- rlência da rTlOfIe, que f"l"MJito dese-
síveis a odores estranhos. Cantava java ver ainda vivo. Um atraso, na
o fado· o fado de Coimbra - com chegada à terra, mesmo pequeno,
sentimento e voz romântica. pexlia ser fatal...
A velha capa envolvia-lhe o A autoridade não se demoveu,
pescoço, numa volta apertada, Razões particulares n30 autori-
de Ver~o e Inverno. Estranhava- zam atropelos.
-se o faclo, no tempo do calor, E o emigrante desalentado,
pois nos frios duros sempre era regressou ao lugar.
um agasalho. Os funcionários da Alfândega,
Um dia, na aula de ginástica - zelosos, lá continuavam a expl~
a que o Morais sempre se vinha rar, devagar, os escaninhos das
furtando - não pôde resistir às in- bagagens. E o tempo, impassível,
timações do mestre: leve que / a deslisar. O emigrante olhou de
desenrolar a capa. E então, cons- novo o relógio. fez cálculos. Se
tatou-se • não sem espanto - que fosse atendido, nessa altura, recor-
o Morais não usava camisa ... ria a um taxi e ainda alcançaria o
Outm vez, numa aula de fv\ate- comboio. Mas ainda tinha à sua
málica, a que ele se obrigou a frente uns quantos passageiros.
assistir, por estar lapaOO !XX" faltas, De cabeça perdida, de novo se foi
o Morais lá foi para o lugar, no ao polícia marítimo. Mas este,
justo receio de uma chamada fatal. finne, ia reiterar a negativa, quan-
O meslre era uma fera e o ~ do o emigrante, olhando-o bem
rais, como sempre, ignorante da aparentemente sem salvação guiçosos da juventude. de frente, lhe reconheceu, na
matéria. Sentados, os alunos possível, levantou-se, foi direito ã Volveram largos anos. Um dia, face, traços remanescentes de
aguardavam, num silêncio de mesa do mestre e muito sério, atracou ao cais, em Lisboa, um uma juventude já distante.
túmulo, ouvir O número da vítima informou, pela derradeira vez: paquete vindo do Brasil. Entre os E, numa alegria repentina, cla-
a imolar, junto do quadro teoebro- - Esse ... senhor doutor, vai fal- passageiros, vinham emigrantes. mou,
samente negro. tar agora! . Após o de>embarque, todos ali- -Mas tu não és o Peitaças?!. ..
O Morais era o número 9 da E, rápido, safu pela pona fora ... nharam na Alfândega, numa looga Era-o, de facto. De marinheiro
turma, numa caneira de dois alu- • fi la, para exame de bagagens. passara à Polícia Marftima. E, nu-
nos. Por sorte, o companheiro da Dois outros académicos, de ca· Operação cIe:norada. na fiscaliza· ma emoção comovida, bradou,
direita - O número 10 - faltava, e raderiSlicas físicas notórias, eram çào atenta de malas e embrulhos. por seu lado:
o Morais, numa simulação, desli- amigos inseparáveis. Não ligavam Um emigrante da provfncia, - E lU não és o Barrigas~! ...
sou, no banco comum, para o grandemente aos estudos. O tem- olhava repetidas vezes o relógio Carram nos braços um do ootm,
lugar vazio. Pareceu-lhe uma ins- po era escasso para as diVffiÔeS. de poiso. Tinha um comooio pró- emocionada;, com um mundo de
piração feliz. Um deles, encorpado, exibia ximo e arriscava-se a perdê-lo. recordações felizes voltando à
O mestre, folheando a cader- um ventre dilatado, numa curva Aquelas demoras exasperavam- lembrança, num tropel... J.,
neta, chamou, precisamente, pelo saliente, que um casaco estreito, no. Se pudesse passar à frente?
número 9. apenado, mais denunciava. Era o Mas sentia que todos viviam na Silva 8r.18<1
VALM
E o Morais, sereno, sentado no Barrigas. Nem por outro nome era ânsia de ser despachados. Nin-
lugar do número 10, ao ouvir o conhecido. Entre gente moça, não guém cederia a sua vez. fO) CI~ro que o &rrip nAo perdeu o
seu próprio número, informou, havia quem se lhe comparasse. Um agente da Polícia Marí- comboio. E chegado à Il'rra, o pai estlYa,
com pressa: O segundo, era o Peitaças. tima vigiava o rigor das priorida- felizmente, de peíeit.l saüde. Bem ~.
dfinal, do estacb gJ<I\o1.', que ele ~,
- falia, senhor doutor! ... Baixo, o peito destacava-se-Ihe des. Impecável na sua fa rda no propósilo I'ào de ~ provhels
E, mal prestou a informação, do perfil aprumado, na exube- azul, atento ao serviço, revela- resisléncias ._
32 SETEMBRO/ctrTU6R09'" REVISTA DA ARMADA