Page 322 - Revista da Armada
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HIsrÓRIAS DE MARINHEIROS                                              /127













          sta história tem raízes longín-  deslisou,  de  novo,  agora  para o   rância de um corpo musculado.   va-se-Jhe  um  funcionário digno,
          quas. Corneça por uma velha   seu  lugar  autêntico,  numa  espe-  Não se sabe se qualquer deles   de difícil acesso.
       E amizade.  nascida entre estu-  rança ele salvação.   chegou a dobrar o Cabo T ()f'Jl)efl-  Mas, inexoráveis, os  ponleiros
       dantes, na  década  de  vinle,  no   O mestre, consultou de novo a   IOSO do SV ano - naquele tempo a   não deixavam de rodar.  Num de-
       liceu Sá de Miranda, em Braga.   caderneta e intimou, agora:   barreira intransponível dos cábulas.   sespero,  resolveu  tentar  o impos-
         Era  esta  uma  academia  alegre   - Número 10! ...    Mas a vida, com os anos a cor·   sível.  Largando as  bagagens,  il
       e folgaza,  onde sobressaiam  al-  Morais,  sempre  solícito, logo   rer, tinha  que ser vivida.  Cada   marcar o lugar, saíu da fila e diri-
       guns  rapazes de  personalidade   infonnou, desta vez com verdade:   um seguiu o seu destino.   giu-se ao agente.  Explicou as suas
       singular.                    • falta, senhor doutor! ...   O Barrigas, numa tradição de   razões. Chegado do  Brasil,  onde
         Um, de recordar, era o Morais,   O mestre, olhando a carteira,   famnia,  lá  foi  para o Brasil.  E o   estivera  anos,  tinha  um  comboio
       um  velho  repelente.  Sempre de   apercebeu-se do  logro, e apon-  Peitaças, chegada a hora do ser-  para  o Minho,  que  perderia, se
       capa  e batina,  já  velhas,  roídas   tando  a dextra  intimativa  ao   viço militar, foi  recrutado para a   não fosse despachado com lxevi·
       pelo tempo,  era o protótipo do   Morais, exclamou:    Marinha.  Aqui  cumpriu  exem-  dttde. Acrescia que o pai, já idoso,
       cábula fedorento,  na adjectivaçào   - Então, venha cá o senhor! ...   plarmente,  esquecidos  que   estava gravemente doente, na imi-
       dos mestres, só eles, decerto, sen-  Apanhado, por fim, o Morais,   tinham sido já os devaneios pre-  rlência da rTlOfIe, que f"l"MJito dese-
       síveis a odores estranhos. Cantava                                                 java ver ainda vivo. Um atraso, na
       o fado· o fado de Coimbra - com                                                    chegada à terra, mesmo pequeno,
       sentimento e voz romântica.                                                        pexlia ser fatal...
         A velha  capa  envolvia-lhe o                                                     A autoridade não se demoveu,
       pescoço,  numa  volta  apertada,                                                   Razões  particulares  n30  autori-
       de  Ver~o e Inverno. Estranhava-                                                   zam atropelos.
       -se o faclo,  no  tempo do  calor,                                                  E o emigrante desalentado,
       pois nos  frios  duros sempre era                                                  regressou ao lugar.
       um agasalho.                                                                        Os funcionários  da  Alfândega,
         Um dia, na  aula  de ginástica -                                                 zelosos,  lá  continuavam a expl~
       a que o Morais  sempre se vinha                                                    rar, devagar, os  escaninhos das
       furtando - não pôde resistir às in-                                                bagagens. E o tempo, impassível,
       timações do mestre:  leve  que   /                                                 a deslisar. O emigrante olhou de
       desenrolar a capa. E então, cons-                                                  novo o  relógio.  fez cálculos.  Se
       tatou-se • não sem espanto - que                                                   fosse atendido, nessa altura, recor-
       o Morais não usava camisa ...                                                      ria a um taxi e ainda alcançaria o
         Outm vez,  numa  aula de fv\ate-                                                 comboio. Mas ainda tinha  à sua
       málica, a que ele se obrigou  a                                                    frente  uns  quantos  passageiros.
       assistir,  por estar lapaOO !XX" faltas,                                           De cabeça perdida, de novo se foi
       o Morais  lá  foi  para o lugar, no                                                ao  polícia  marítimo.  Mas este,
       justo receio de uma chamada fatal.                                                 finne, ia reiterar a negativa, quan-
         O meslre era  uma fera e o ~                                                     do  o emigrante, olhando-o bem
       rais, como sempre,  ignorante da   aparentemente sem  salvação   guiçosos da juventude.   de frente,  lhe  reconheceu, na
       matéria.  Sentados,  os  alunos   possível, levantou-se, foi direito ã   Volveram  largos anos.  Um  dia,   face, traços  remanescentes de
       aguardavam,  num  silêncio de   mesa do  mestre e  muito sério,   atracou  ao cais, em  Lisboa,  um   uma juventude já distante.
       túmulo, ouvir O número da vítima   informou, pela derradeira vez:   paquete vindo do  Brasil.  Entre os   E, numa  alegria  repentina, cla-
       a imolar, junto do quadro teoebro-  - Esse ... senhor doutor, vai fal-  passageiros, vinham emigrantes.   mou,
       samente negro.              tar agora!  .                Após o de>embarque, todos ali-  -Mas tu  não és o Peitaças?!. ..
         O Morais era  o número 9 da   E,  rápido, safu pela pona fora ...   nharam na Alfândega,  numa  looga   Era-o,  de facto.  De marinheiro
       turma, numa caneira de dois alu-        •              fi la,  para  exame de bagagens.   passara à Polícia Marftima. E, nu-
       nos.  Por sorte, o companheiro da   Dois  outros académicos, de ca·   Operação cIe:norada.  na  fiscaliza·   ma  emoção comovida, bradou,
       direita  - O número  10 - faltava, e   raderiSlicas  físicas  notórias, eram   çào atenta de malas e embrulhos.   por seu lado:
       o Morais, numa simulação, desli-  amigos inseparáveis. Não ligavam   Um  emigrante da  provfncia,   - E lU não és o Barrigas~!  ...
       sou, no  banco comum,  para o   grandemente aos estudos.  O tem-  olhava  repetidas vezes o  relógio   Carram nos braços um do ootm,
       lugar vazio. Pareceu-lhe uma ins-  po era escasso para as diVffiÔeS.   de poiso. Tinha um comooio pró-  emocionada;, com um mundo de
       piração feliz.               Um  deles,  encorpado,  exibia   ximo  e arriscava-se a perdê-lo.   recordações felizes  voltando à
         O mestre, folheando  a cader-  um  ventre dilatado,  numa  curva   Aquelas demoras exasperavam-  lembrança, num tropel...   J.,
       neta, chamou, precisamente, pelo   saliente, que  um  casaco estreito,   no.  Se  pudesse  passar  à frente?
       número 9.                   apenado,  mais  denunciava.  Era  o   Mas  sentia que  todos  viviam  na   Silva 8r.18<1
                                                                                                               VALM
         E o Morais, sereno, sentado  no   Barrigas. Nem por outro nome era   ânsia de ser despachados.  Nin-
       lugar do número  10,  ao  ouvir o   conhecido. Entre gente moça, não   guém cederia a sua vez.   fO) CI~ro que o &rrip nAo perdeu o
       seu próprio  número, informou,   havia quem se lhe comparasse.   Um  agente da  Polícia  Marí-  comboio. E chegado à Il'rra, o pai estlYa,
       com pressa:                  O  segundo, era  o  Peitaças.   tima vigiava o rigor das priorida-  felizmente, de peíeit.l saüde.  Bem  ~.
                                                                                          dfinal, do estacb gJ<I\o1.', que ele ~,
         - falia, senhor doutor!  ...   Baixo,  o  peito  destacava-se-Ihe   des.  Impecável  na  sua  fa rda   no propósilo  I'ào de  ~ provhels
         E, mal  prestou  a  informação,   do  perfil  aprumado,  na  exube-  azul, atento  ao serviço, revela-  resisléncias ._
       32  SETEMBRO/ctrTU6R09'"  REVISTA DA ARMADA
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