Page 383 - Revista da Armada
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A  MARINHA HENRIQUINA 13J



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           "EchamandO Gil eãnes a de p.lrte o encarregou  muyto  near. E não é um  processo simples, porque quem escreveu no
                   que  todauya se trab.llhasse de passar aquelle cabo", e  sécuJo XV não  teve  preocupações de deixar um  relato fiel  dos
                   isto depois de o mesmo seu escudeiro já  ter falhado  acontecimentos. Uns escreveram de cor algumas lembranças da
          uma  tentativa e "despois de de doze ànos" que sempre enviara  sua juventude (como aconteceu com Diogo Gomes) e outros pen-
          navios, com recomendações especi.1is p.ua que fossem 1Th1is longe  saram, essencialmente, na imagem perfeita a imaculada que  que-
          e tentassem ultrapassar a barreira desse malfadado Bojador.   riam dar do Infante D.  Henrique (lurara).  Em ambos os casos a
                                                               realidade sofreu com isso, e nno nos resta outra solução, que não
            É assim que conta Gomes Emle5 de Zurara na sua Crónica dos  seja  interpretar, purificar, deduzir, o que as  descrições terão de
           Feitos da  Guiné.  um  texto completado em 1953, escrito por  verdade, de possível ou de impossível.
          expresso  mandado de Afonso  V, para glorificar a  figura  do   Ora  bem!  O que sabemos nós acerca  das condições de mar, de
          Infante D. Henrique, seu tio.                        vento e da costa  por aquelas  paragens? ... O vento noroeste, pl'C"
            Toda esta crónica corresponde a um objectivo político essencial:  dominante, gera  uma ondulação larga que quebra  na  costa no
          a elevação e promoção hislóriC.l da figura ,do Infante D. Henrique,  golfo que existe a norte do cabo Yubi (entre o que se supõe ser a
          e da sua acção de exploração da costa da Amca Ocidental.   localização do Cabo Não e o Cabo Yubj). Depois venl a tal corrente
            Na décima terceira tentativa, depois de grandes recomendações  das Canárias, com valores entre 0.5 e 1 nó, mas que entre o "funil"
          do sr. lnfante, Gil  Eanes passava para lá do cabo Bojador e trazia   formado pela ilha de  Fuerteventura e o cabo acelera até valores
          p.1ra Lagos as "ros.1S de 5.1nta Maria". ou rosas                  que  podem atingir 6 nós, junto à cosia.  Agora
          de além  Bo~1dor, a prova de que estava aberto                     imaginemos um "ronceiro" navio, com poucas
          a caminho das "descobertas" para o Sul. Sabe-                      capacidades de  bolina, a navegar com  vento
          se mal onde ficava  este  Bo~1dor das primeira                     fraco em direcção ao sul,  naquele canal.  Se se
          parte do século XV. Alguns mapas da época (e                       deixa  "ensacar" a norte do cabo  Yubi,  vai
          outros mais antigos) apontam um  tal  Buyeder                      sendo empurrado pela  tal ondulaçno larga  e
          como sendo - mais ou menos - O que hoje sabe-                      pela  corrente, diminuindo cada  vez mais as
          mos ser o cabo Yubi, em  frente à  ilha  de                        possibilidades de dobrar o cabo. Quando se
          Fuerteventwa. Todavia, lá mais para o fim do                       apercebe do perigo, só lhe resta ir orçando pro-
          século, ele já está colocado no  local que tem                     gressivamente, esperando que uma  aragem
          hoje e com a indicação eXpreSs.1  de que do                        mais  forte o tire do golfo ou até encalhar na
          Cabo Não ao Bojador vão cerca de sessenta                          costa  que  corre  de  Esnoroeste  para
          léguas  de  costa.  Assim  o  revela  Duarte                       Oessudoeste, a norte do c.aoo.  Assim  deve ter
          Pac.heco, acrescentando que  n~o entende os                        acontecido com  muitas embarcações do século
          medos dos navegadores do Infante em  ultra-                        XV, como continua a acontecer com os incautos
          passar esse cabo, embora reconheça que  uma                        do século XX.  E então, de onde vem o mito do
          enom\e restinga de pedra, onde rebentavam as                       Bojador que se tentou  passar ao longo de dol'.e
          vagas, o tomava assustador para quem  nave-                        anos? Será fácil  perceber que o perigo real está
          gasse de norte para sul. Ao mesmo tempo' se                        entre o Cabo Yubi e a ilha de Fuerteventura ou
          nos lembrarmos - o cabo de Não era aquele                          a partir do momento que se  ultrapassa o tal
          que, urna vez ultrapassado peJos mareantes, o regresso seria p0s-  Cabo de Não e se embarca na corrente cruzada com a ondulação e
          sível, sim ou  não (revertur aut  non).  Assim o dizia, ou sugeria  o vento. Portanto o Cabo Bojador foi  um mito que se manteve,
          Diogo Gomes, quando falava  da  expedição de D.  Femando de  depois de 1426, por razões que não aparecem claramente nos tex·
          Castro em  1425.  E da mesma  forma  quando afirmava que D.   tos. Todavia, Zurara, quando relata esta questão do Cabo Bo~1dor,
          Henrique enviara Gonçalo Velho para verificar o que eram essas  acrescenta o seguinte:  "bem Irc que elles  11011  se  lonrmxmr sem hOllm
          grandes "aguagens" existentes p.1ra lá de Fuertevenhlra, ou entre  que por entellda o que faleciam em mfo cumprir perfeitamellte O millldado
          a ilha e o continente africano. t: grande a confusão de dados, e nào   de 5e11  snlJwr Imlms hyalll  sobre a costa de gralrada.  Outras corriam
          é fácil  tirar uma conclusão definitiva das informações escass.1S e  sobre o milr de lrum/e até que filhnoom  {tomamml grOSSils presas dos
          contraditórias que nos chegam do século XV: Zurara diz que se  illfttis ... ".  Parece  pois claro, o que impedia (?) os navegantes de
          tentou  passar o cabo 13 vezes e que a façanha  só foi  conseguida  continuar ao longo de uma costa inóspita e <.Iespida de quaisquer
          por Gil  Eanes, no ano de 1434; Diogo Gomes diz que em  1425 se  proveitos, como era a costa  ocidental de Amca  naquela  zona.
          observaram grandes aguagens, para  lá  do Cabo de Não e que  Melhor do que passar o Bojador era manter um mito de inacessi-
          Gonçalo Velho foi mandado, em 26, para verificar o que se passa-  bilidade e continuar O torso • por onde ele dava 05 seus frutos.
          va  para lá  dessa  região. São estas descrições que se apresentam  Quem sabe se não foi  Zurara que, em  1453. quando as explo-
          aos  historiadores gerando confusões e levando à conclus.io que  rações africanas já  tinham objectivos claros e palpáveis, sem
          nem sempre têm em conta os melhores e mais verosímeis dados.  encontrar outras razões para esta enércia de navegar para sul, não
          Se Diogo Gomes tem raz.io, então a partir de 1426 não havia qual-  inventou, ele próprio o mito do Cabo Bojador?
          quer raz.io para temer as !l.wegaçõe5 para sul, a não ser um susto   A verdade é que, depois de 1426, de qualquer Bo~1dor, já  não
          despropositado por causa  de uma  restinga de pedra  a que era   haveria  razão para grandes medos, como o sugere Duarte
          preciso dar resguardo. Se lurara tem  razão, então andaram os  Pacheco, manifestando grande admiração pelo que diz lurara.  O
          marinheiros portugueses em grande susto, durante 12 anos, até
          que alguém se aventurou a transpor o tal cabo. Como se pode ver,
          a interpretação dos documentos e a elaboração de  uma  hipótese                          J. Semedo dr Mnlos
          que se possa tomar por veridica, não é um processo simples e li·                                 mNFZ
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