Page 297 - Revista da Armada
P. 297

Estratégia Terrestre
                           Estratégia Terrestre



                      V. S. Estratégia Naval
                       V. S. Estratégia Naval



                                  Algumas divergências clássicas





               á algum tempo atrás quando, durante  batem entre si quando, por uma ou por outra  As visões terrestres sobre a destruição das
               uma palestra que proferíamos no  razão, consideram vantajoso. Em resultado  forças armadas do inimigo e/ou da sua von-
         HInstituto Superior Naval de Guerra,  deste facto o estratega naval considera os  tade de combater, são tipicamente “clause-
         questionávamos a validade actual de alguns  combates no domínio da táctica e tudo o resto  witzianas” e têm perdurado no tempo. Con-
         aspectos da doutrina estratégica naval, fomos  no domínio da estratégia. Para o estratega ter-  tudo, Clausewitz  morreu antes de consolidar
         instados: a explicar as divergências clássicas  restre os limites da táctica e da estratégia são  o seu pensamento estratégico, expresso em
         entre os pensamentos estratégicos terrestre e  bem diferentes: como regra, as acções dos es-  notas não organizadas e vertido em artigos
         naval; e a comentar sobre a conveniência e  calões mais baixos de comando são tácticas,  publicados postumamente, como se fossem
         utilidade dessas divergências. A resposta cor-  enquanto as acções dos escalões de comando  produto acabado. Por isso, não parece lícito
         respondeu, genericamente, ao conteúdo do  de teatro são estratégicas; cabe a este coman-  escolher os trechos que melhor suportam
         presente artigo, desenvolvido a partir da aná-  dante traduzir as directivas estratégicas em  convicções circunstanciais, esquecendo quer
         lise aos conceitos que os estrategistas, ter-  ordens tácticas, onde a manutenção do con-  o contexto quer se Clausewitz pensaria da
         restres e navais, usualmente adoptam sobre: a  tacto com o inimigo é um imperativo para as  mesma forma em plena época nuclear que,
         natureza do ambiente geográfico onde ope-  forças terrestres.         por si só, provoca profundas diferenças entre
         ram as respectivas forças; os limites entre a  A inquestionável importância do “terreno”  o ambiente estratégico do século XIX e aquele
         táctica e a estratégica; e o objectivo último  como cenário da actividade humana, associa-  em que vivemos, à entrada do século XXI.
         das operações militares.           da à  natureza  contínua do contacto na guer-  Este problema agravou-se nos últimos anos,
           O estratega terrestre raciocina em termos de  ra terrestre, conduzem-nos a uma outra diver-  sobretudo porque alguns publicistas da
         teatros, de campanhas e de batalhas. Esta pos-  gência clássica entre os pensamentos estraté-  estratégia, fascinados pela visibilidade das
         tura mental é determinada, sobretudo, pela  gicos terrestre e naval: para o estratega ter-  operações de paz :
         geografia, cujo principal elemento é o “ter-  restre o objectivo último das operações milita-  - Cingem a missão das forças navais ao trans-
         reno”, em função do qual são concebidas e  res é a destruição das foças armadas do inimi-  porte e ao apoio logístico;
         realizadas as acções das forças terrestres. O  go e/ou da sua vontade de combater; para o  - Revelam impaciência e incompreensão rela-
         estratega naval, devido à natureza do mar, é  estratega naval é o controlo do inimigo ou,  tivamente a outras tarefas das forças navais;
         forçado a pensar globalmente ou, pelo menos,  melhor dizendo, o controlo do uso do mar,  - Colocam o ponto focal do conflito no inimi-
         a olhar para além dos limites geográficos das  uma vez que na guerra moderna as tecnolo-  go, a cuja destruição todas as acções militares
         suas preocupações imediatas. Na opinião do  gias ao alcance de todos impedem o  devem estar subordinadas.
         estratega terrestre o “terreno” é o ponto de par-  “domínio do mar”, só possível com o aniqui-  As discussões estratégicas onde são invoca-
         tida para a concepção da acção estratégica. O  lamento total das forças adversárias, objectivo  dos estes argumentos de raiz “clause-
         estratega naval não discorda deste facto, entre  inalcançável.        witiziana” parecem-nos estéreis e indiciado-
         outros aspectos, porque o Homem apenas  Por controlo, em sentido lato e na perspecti-  ras de pouco entendimento sobre: a natureza
         pode viver de forma sustentada em ambiente  va naval, quer dizer-se o estabelecimento de  dos conflitos; a fundamental importância do
         terrestre. Contudo, atribui-lhe um valor me-  condições de relacionamento mais favoráveis  equilíbrio entre as componentes do sistema
         nor, em resultado de representar apenas o  do que as existentes antes do conflito. A chave  de forças militares; e a imperscindibilidade da
         ponto de chegada da força naval, que até  deste conceito está associada ao facto de o  acção conjunta. Com essa postura, redutora
         pode ser diferente do ponto de partida. Esta  controlo ter um carácter estratégico amplo e  sem qualquer sombra de dúvida ou, “par con-
         divergência de entendimento leva a que o es-  englobante, pelo que o objectivo último das  tre” intelectualmente pouco sustentável
         tratega naval conceba o emprego da força  operações militares pode ser alcançado sem a  porque apenas serve interesses corporativos,
         para a defesa de interesses nacionais, onde  derrota das forças contrárias; pode até não  aqueles publicistas revelam miopia estratégi-
         quer que se encontrem. Por seu lado, o estra-  implicar o colapso governamental ou a  ca, fenómeno muito característico das
         tega terrestre necessita de limites físicos para  rendição do inimigo; e não requer, de forma  posições extremadas que, quando são adap-
         conceber o emprego da força. Por isso, face  alguma, o extermínio dos cidadãos adversários.  tadas em estratégia militar, conduzem ao
         aos processos em curso de diluição das fron-  Por isso, o pensamento estratégico naval con-  insucesso e têm gravosas repercussões no
         teiras e de alteração ao conceito de sobera-  sidera que o problema central e primário do  tempo. Com efeito, ao orientarem e condi-
         nia, esforça-se por conceber delimitações su-  conflito consiste em definir, quer os tipos e os  cionarem o planeamento estratégico para
         cessivamente englobantes para os espaços es-  graus de controlo decorrentes de cada acção,  situações militares muito específicas, a que
         tratégicos de referência e afirmação do inte-  directa ou indirecta, quer os tipos e os graus de  procuram fazer face com planos gerais de
         resse nacional.                    controlo mais apropriados à manutenção de  defesa destinados a definir o tipo e o nível de
           Para o estratega naval o combate materia-  uma determinada situação estratégica. Apesar  forças a organizar, a edificar e a empregar,
         liza-se por uma série de encontros distintos:  de ser uma tarefa difícil, que só pode ser ade-  abrem campo à prevalência de uma determi-
         as forças colidem, separam-se, reagrupam e  quadamente realizada em função de casos  nada doutrina estratégica sobre as restantes.
         ocupam posições mantendo um elevado grau  concretos, é um facto que a ideia de controlo  Para além disso, reduzem a flexibilidade para
         de autonomia para decidir quando, onde e  como objectivo da guerra abre francamente os  lidar com futuros de difícil previsão e probabi-
         como combaterão de novo. Na maioria das  horizontes do planeamento estratégico militar,  lização, que deve ser a característica principal
         situações estratégicas as forças navais só com-  em termos de soluções estratégicas possíveis.  do poder militar em tempo de incerteza.

         6 SETEMBRO/OUTUBRO 99 • REVISTA DA ARMADA
   292   293   294   295   296   297   298   299   300   301   302