Page 361 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
             Património Cultural da Marinha


                                         Peças para Recordar





                                         21. O Navio de Marfim


                No património do Museu de Marinha encontra-se uma peça que consideramos a mais bela existente
             naquele estabelecimento cultural.
                Foi crismada de Alegoria – Neptuno suportando uma nau. De facto, o rei dos mares, com toda a sua
             majestade, repousa numa palma de prata cinzelada. Este conjunto assenta numa esfera alada.
                Neptuno segura na mão direita o emblemático tridente, com o qual aplaca as fúrias do inconstante
             Eolo. Dois cavalos marinhos com longas caudas colhidas em aduchas, puxam esta magnífica com-
             posição.
                Nesta excelente obra, executada em marfim alvíssimo, o rei de todos os Oceanos, exibindo uma força
             hercúlea, sustenta na cabeça e ampara com a sua mão esquerda, uma magnífica nave que o ultrapassa na
             sua terrena, mas não divina, dimensão.
                O navio, imaginado com alguma fantasia, pretende figurar uma nau de belas linhas, de popa acastela-
             da, cinco mastros incluindo o gurupés que enverga uma cevadeira. As velas de prata, numa armação de
             galera, estão cheias pelo vento de um largo. Na proa, uma figura de sereia, em prata cinzelada, é encima-
             da pela cabeça de um fantástico animal de cuja boca escancarada emerge uma peça de artilharia. Esta, e
             mais duas baterias de cinco canhões, constituem o potencial bélico deste vaso de guerra.
                O tabuado que modela o casco é fixado por mais de 450 pregos de prata, cujas cabeças são pequenas
             safiras.
                Esta peça, possivelmente o mais importante marfim que temos em Portugal, tem a altura de 133 cm e
             o navio 78 cm. Todavia, apesar da excelência da obra, a Alegoria não possui uma única marca visível
             que identifique a origem, a data, ou o nome do artista que a fabricou.
                A Alegoria não é única. Existe, em França, no Museu da Cidade de Metz, uma peça de dimensões
             idênticas mas à qual lhe falta o navio. Nessa, igualmente, não se encontra qualquer marca.
                Todavia, em Dresden, na Alemanha, também no Museu de Cidade, encontra-se a chamada Fragata de
             Marfim, com dimensões idênticas à nossa e que, felizmente, está bem identificada. Foi executada por
             Jacob Zeller, nascido em Ratisbona. Um artista que, a partir de 1610, trabalhou na Saxónia para os
             eleitores Cristiano II e João Jorge I. Produziu mais de duas dezenas de trabalhos para a Câmara das Artes.
             Faleceu em 1620 com 39 anos de idade.
                A mais importante obra de Zeller é a referida Fragata, que exibe o seu nome e que deve ter sido o seu
             último trabalho.
                Terá saído da oficina de Zeller a Alegoria do Museu de Marinha? Apesar da similitude das obras é
             talvez pouco provável que Zeller tenha registado, na Fragata, o seu nome e outras valiosas informações e
             não nos tenha deixado a mais pequena marca  na Alegoria.
                O navio tem sido, ao longo dos séculos, um motivo de inspiração artística. Bebeu-se, no passado, por
             taças de prata com a forma de barco e utilizaram-se navetas do mesmo metal para guardar incenso. Os
             ourives portugueses deixaram-nos preciosos exemplares deste tipo que se encontram em museus e
             colecções particulares.
                Na mesma linha, mas de fabrico mais requintado, foram usados, em França, e na Inglaterra, navios em
             prata para marcar, numa mesa, a posição do conviva de maior dignidade. Os prateiros de Augsburgo e de
             Nuremberga, deixaram-nos trabalhos de rara beleza, em que os navios são suportados por bases muito
             elaboradas. No Museu Nacional daquela última cidade existe o chamado navio Schlumelfelder, exibindo
             a data de 1505, que foi concebido para centro de mesa, tendo ainda a característica de ser recipiente
             para mais de dois litros de vinho.
                Para terminar, queremos deixar aqui uma sugestão ao leitor: Dê uma saltada ao Museu e vai ver que a
             Alegoria merece a deslocação.


                                                                                Museu de Marinha
                                                                                (Texto do CMG A. Estácio dos Reis)
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