Page 176 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (6)



                            Fomos ao Rio de Meca
                             Fomos ao Rio de Meca

              e não Pelejámos nem Roubámos
               e não Pelejámos nem Roubámos


                uitos dos meus desconfiados leitores
                me têm já perguntado se é verdade
         Mtudo aquilo que relato nesta espécie
         de crónica. Pois aqui respondo a quem ainda
         não tive ocasião de o fazer pessoalmente, ou
         seja a todos os que ainda não perguntaram mas
         tencionam fazê-lo: nada do que aqui escrevo é
         falso, embora nem sempre se possa dizer que é
         a verdade nua e crua. Eu explico: há três pro-
         cessos naturais de distorção da verdade que
         não passam forçosamente pela mentira – pri-
         meiro: um relato “em segunda mão”, onde é
         usual dizermos que o “vendemos ao mesmo
         preço por que o comprámos”, pelo que esta-
         mos, naturalmente, sujeitos à credibilidade do
         primeiro narrador; segundo: as partidas que a
         nossa memória nos prega, fazendo -nos, muitas
         vezes, misturar datas e locais ou, pior ainda,
         factos ocorridos com acontecimentos sonha-
         dos ou imaginados; terceiro e último: o “colori-
         do” inerente a qualquer processo narrativo que
         se preze, dando ênfase a sucessos que de outro
         modo seriam considerados triviais ou pondo,
         arbitrariamente, em evidência pormenores que
         poderiam passar despercebidos.
           Quanto ao primeiro processo fiquem os
         meus distintos leitores tranquilos, pois evitarei,
         tanto quanto possível, trazer aqui histórias que
         não tenha pessoalmente vivido, à excepção de
         uma ou outra que guardarei “na manga” para
         ocasiões em que a falta de assunto me faça
         correr o risco de faltar a este encontro bimes-
         tral. No que se refere ao segundo, também me
         parece não haver, pelo menos por enquanto,
         motivo para grandes preocupações, uma vez
         que a vivência deste vosso camarada, confor-
         me referido em anteriores crónicas, ainda não
         é tão longa como isso. Agora quanto ao tercei-
         ro tenham lá paciência, pois faço tenções de o
         usar amiúde, deliberada e descaradamente. É
         que, tal como os bons queijos e enchidos, que
         necessitam de ser devidamente banhados em  tecimentos históricos em gráficos, tabelas e es-  ses!) enquanto ele, que participara na missão
         condimentos antes de poderem conservar-se  tatísticas, cometem a incrível proeza de tornar  de evacuação de cidadãos nacionais durante a
         na salgadeira ou no fumeiro, também as histó-  a História incrivelmente chata.  guerra civil na Guiné-Bissau, não tivera direito
         rias devem ser um pouco “apimentadas”, para   Mas vinha tudo isto a propósito de uma  a receber qualquer distintivo. Retorqui-lhe que
         mais facilmente poderem ser guardadas na me-  conversa em que há tempos me envolvi com  eu, então, teria muito mais razões de queixa,
         mória. Naturalmente, há quem prefira os frios  alguns “filhos-da-escola” sobre as chamadas  pois além de também ter participado naquela
         relatórios ou os inexpressivos registos fotográ-  “missões reais” das Forças Armadas (curiosa  missão tinha cumprido uma comissão de seis
         ficos, do mesmo modo que alguns optam pela  expressão aquela, que parece tornar fictícias  meses em Timor, em circunstâncias idênticas
         congelação dos alimentos em detrimento dos  todas as outras missões, incluindo as acções de  às de outros militares que tinham tido direito à
         métodos tradicionais de conservação, sem se  fiscalização ou de busca e salvamento - quan-  respectiva “carica”, enquanto eu (juntamente
         importar que aqueles fiquem mais insípidos e  tas vezes executadas em situações de grande  com outros cento e sessenta) me ficara pelas
         “deslavados”. É, aliás, por esse motivo que se  risco motivado pela intempérie ou pela resis-  fotografias da “viagem”.
         diz que a História antiga é muito mais interes-  tência violenta oferecida pelos vistoriados!).   - Pois, pois. – Prosseguiu o queixoso. – Mas
         sante do que a contemporânea, pois os velhos  Queixava-se um deles pelo facto de ver cama-  aquilo na Guiné é que foi a sério, com as “bu-
         cronistas, com toda a sua parcialidade e falta  radas ostentarem medalhas comemorativas da  jardas” a cair à nossa volta!
         de rigor, tinham a vantagem de procurar pren-  NATO ou da UEO por uma rotineira patrulha   Naturalmente os leitores menos conhece-
         der a atenção dos seus leitores, enquanto os  de duas ou três semanas no Adriático (sim, eu  dores dos factos estarão, já, a imaginar uma
         modernos historiadores, traduzindo os acon-  sei que há quem tenha “gramado” vários me-  terrível batalha, em que uma pequena força

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