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HISTÓRIAS DA BOTICA (33)




                               O Canário Negro
                               O Canário Negro


                e a equipa Café com Leite
                e a equipa Café com Leite




             cada vez mais frequente na nossa so-  ra página. Crescem o medo e os ódios. É  corveta um marinheiro, de origem africana,
             ciedade a discussão clássica sobre o  questão de grande actualidade. Nos recôn-  que tinha um nome de ave. Já me esqueci
         É  racismo, sobre o que se espera dos que  ditos do tempo – que é emoção – surge, a  de qual seria exactamente, mas era certa-
         chegaram e sobre a tolerância exigida aos  este propósito, a memória de uma Corve-  mente uma ave canora – porque ele andava
         portugueses. Escrevem-se artigos de primei-  ta, em comissão nos Açores. Havia nessa  sempre a cantarolar – que por facilidade de
                                                                                         referência se vai referir como
                                                                                         o Canário.
                                                                                           O Canário era “da máqui-
                                                                                         na”, mas, na verdade, era pau
                                                                                         para toda a obra, pois em
                                                                                         tudo se ajeitava. Sempre com
                                                                                         um sorriso de dentes imacu-
                                                                                         lados e a trautear uma canção
                                                                                         ritmada, o Canário fazia tudo
                                                                                         com uma alegria que poucos
                                                                                         compreendiam ou igualavam.
                                                                                         Sendo o único negro a bordo,
                                                                                         ouvia os reparos habituais,
                                                                                         do tipo:
                                                                                           -“Ainda bem que temos luz
                                                                                         acesa, se não, não encontráva-
                                                                                         mos o preto!!”- ou  ainda - “
                                                                                         Saíste da máquina preto que
                                                                                         nem um tição, vai-te lavar es-
                                                                                         carumba!!!”…
                                                                                           O Canário mantinha um ras-
                                                                                         gado sorriso, e respondia:
                                                                                           - “Eh pá não sabes que o
                                                                                         mogno preto é sinal de clas-
                                                                                         se!!” ou “estou escuro, mas
                                                                                         polidinho, fico a brilhar en-
                                                                                         quanto tu estás cada vez
                                                                                         mais baço!!”…e continuava
                                                                                         como se nada acontecesse.
                                                                                         Na verdade nem os primei-
                                                                                         ros comentários eram feitos
                                                                                         com maldade, nem a resposta
                                                                                         era dada em tom de agressi-
                                                                                         vidade. Parecia tudo parte de
                                                                                         um ri tual, em que, em ver-
                                                                                         dade, o Canário – acredito
                                                                                         eu – se achava o centro das
                                                                                         atenções…Muitos dos que o
                                                                                         admoestavam, pareciam ser
                                                                                         seus genuínos amigos.
                                                                                           Havia muitas razões para
                                                                                         gostar do Canário, uma delas
                                                                                         era a sua grande habilidade
                                                                                         como desportista. Em qual-
                                                                                         quer desporto era pretendido,
                                                                                         pois tinha grande habilidade
                                                                                         e resistência. Ora aconteceu,
                                                                                         que precisamente nessa co-
                                                                                         missão nos Açores, se organi-
                                                                                         zou um torneio de futebol em
                                                                                         Ponta Delgada, em que entra-

         30  FEVEREIRO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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