Page 58 - Revista da Armada
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brindo-a de ridículo: uma criatura distante,  século XVIII e em momentos do vendaval na-  formação do Príncipe foi o espanhol Enri-
         pouco dotada, que desprezava os portugue-  poleónico. Uma das mais importantes obras  que Casanova, então residente em Portugal
         ses e que se dava mais a prazeres mundanos  portuguesas dessa fase é o Eneias salvando An-  e mais familiarizado com a técnica da agua-
         que à governação. Nenhum deles tem razão  chises do Incêndio de Tróia, de António Manuel  rela, pouco divulgada no mundo artístico
         no que diz: João Franco saltou do seu coche  da Fonseca, professor na Academia e «Pintor  português. A aproximação entre a casa real e
         no meio do tiroteio e cruzou o Terreiro do  da Real Câmara e Mestre de suas Majestades  o artista deu-se por intermédio do represen-
         Paço a pé, pelo caminho da emboscada e  e Altezas». Talvez tenha sido ele o primeiro  tante espanhol em Portugal, D. Juan de Va-
         atrás do landau real, sem reve-                                                lera, que o recomendou à rainha
         lar nenhum medo; e D. Carlos                                                   Dª Maria Pia, e os seus dotes de-
         nunca foi a caricatura que dele                                                vem ter sido do agrado do Prín-
         construiu a propaganda repu-                                                   cipe, que não mais se separou do
         blicana. Para além da dimensão                                                 mestre. Armando L u ce na, que
         política incontestável – concor-                                               em 1946 publicou um estudo so-
         de-se ou não com as ideias –,                                                  bre D. Carlos enquanto artista,
         devem salientar-se duas com-                                                   diz-nos: “Deve, certamente, ter
         ponentes humanas de reconhe-                                                   sido bastante grande a influên-
         cido gabarito: o artista plástico,                                             cia de Casanova exerci da sobre
         pintor de ar livre e de atelier, e o                                           a formação estética de D. Carlo s,
         apaixonado pela ciência, orien-                                                nessa altura ainda príncipe; mas,
         tador de sucessivas campanhas                                                  a provável ascendência do mes-
         oceanográficas, com resultados                                                  tre não foi além de certos limites,
         científicos publicados. Delas fa-                                               porque o carácter inicial, a paixão
         laremos a seguir.                                                              pelos temas marítimos, não só vi-
                                                                                        nha de longe, como se prolongou
         O ARTISTA                                                                      imperturbavelmente através de
                                     Farol da Guia.
           A educação artística estava   D. Carlos - Aguarela sobre papel, 1900.        toda a sua ideologia artística.” E
         sempre presente nos programas                                                  esta é que é a questão medular da
         mais exigentes de formação dos jovens do  mestre do rei D. Carlos, que nunca cultivou  carreira do artista, da sua personalidade e do
         final da segunda metade do século XIX, e os  o género académico da pintura histórica, em  seu talento. A influência dos mestres reve la-
         filhos de D. Luís não deixaram de receber li-  absoluta decadência por toda a Europa. O  -se na utilização dos materiais, no domínio
         ções de música e artes plásticas. Mas quer o  próprio romantismo emergente queria outros  dos crayons ou do pincel e no controlo das
         destino que a sensibilidade de cada um seja  temas pictóricos, e caminhou no sentido da  c ores, mas o essencial das suas características
         modelada de forma individualizada, distin-  paisagem bucólica das Viagens na Minha Terra  está na maneira como vê os temas, na forma
         guindo as personalidades com caprichosos  de Almeida Garrett. A produção portuguesa  como olhou para os seus modelos humanos
         ditames que escapam à compreensão huma-  deste período é relativamente pobre, mas fo-  ou naturais e os colocou na tela, no papel ou
         na. O velho rei D. Fernando II pintava com  ram com certeza os seus representantes que  no cartão.
         alguma paixão e apreciava obras de arte que  exerceram a primeira influência no futuro rei,   Casanova, como disse, era um aguarelista
         coleccionava com critério, mas não se lhe re-  aproximando-o da natureza e da paisagem,  de mérito e é com essa técnica que o Príncipe
         conhece particular génio executante. D. Luís  embora ainda sem a exploração da luz e das  surge junto de um público ainda restrito, a
         tinha orgulho nos seus dotes musicais que,  nuances da progressividade da cor que virão  quem oferece as primeiras “marinhas”, ain-
         na época, nunca ninguém se atreveu a negar,  com o Naturalismo e com o crescente domí-  da nos anos oitenta. Só se conhecem os seus
         mas as observações que nos chegaram têm a  nio da aguarela e do pastel.  trabalhos a pastel a partir de 1892, mas a pro-
         piedosa referência de que “El-rei                                              gressão nesse género foi muito
         deve trabalhar mais a sua arte”.                                               superior à aguarela, ultrapassan-
         O Infante D. Afonso recebeu uma                                                do largamente o próprio Casano-
         formação idêntica à do irmão,                                                  va e distinguindo-se claramen-
         mas nunca ouvi ou li quem lhe                                                  te no panorama artístico do seu
         gabasse os dotes artísticos. Realça,                                           tempo. São a pastel os seus me-
         sobretudo, o talento de D. Carlos                                              lhores trabalhos, como «o sobrei-
         para as artes plásticas, tão notó-                                             ro», a «a armação de atum», «Vila
         rio e diferente de qualquer outra                                              Franca», «farol da Guia», várias
         figura da Família Real e perfeita-                                              paisagens à beira mar e (muitas)
         mente documentado por cente-                                                   «marinhas»; e mesmo retratos,
         nas de obras assinadas de enor-                                                como o camponês alentejano José
         me qualidade. Denota, sobretudo,                                               Maria Pires da Silva (1907), onde
         um processo evolutivo em que é                                                 sobressai o apuramento técnico e,
         evidente a maturação técnica e                                                 sobretudo, o trabalho persistente
         estética onde é evidente o acom-                                               de atelier, próprio de quem recusa
         panhamento dos movimentos ar-                                                  ser visto como “o grande perso-
         tísticos do seu tempo.                                                         nagem, amador de arte e diletan-
           A pintura portuguesa do sécu-  Noite e dia .                                 te que pinta nas horas de ócio”.
                                     D. Carlos - Aguarela sobre papel, 1901.
         lo XIX (como todas as artes) sofre                                             Fialho de Almeida, cuja pena afia-
         as agruras da agitação política que decorre da   Rocha Martins – um dos mais importantes  da nunca poupou o Rei nem a monarquia às
         saída da Família Real e da Corte para o Brasil,  biógrafos de D. Carlos – diz que “aos dezas-  suas ferroadas venenosas, era também crítico
         em 1807, a que se seguiu a agitação política  sete anos recebia lições de pintura dadas por  de arte. Na sequência de uma exposição no
         que durou toda a primeira metade do século.  Miguel Lupi”. O mestre era, sem dúvida de  Grémio Artístico, deixou o seguinte comentá-
         Quando Passos Manuel criou a Academia de  vulto, mas não deve ter agradado o suficiente  rio: “No grupo novo, o lugar de honra per-
         Belas Artes, em 1836, Portugal estava agarra-  aos gostos subtis da Família Real. Quem veio  tence ao rei D. Carlos, cujos pasteis passam
         do aos temas neoclássicos o gosto do final do  a marcar uma posição mais determinante na  de prenda à categoria dum verdadeiro tra-

         20  FEVEREIRO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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