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REVISTA DA ARMADA | 490
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA 37
O ébola, as pessoas
e o mundo…
Aatual epidemia do ébola encerra a verdade do mundo. Estou Acreditar que em África é possível, presentemente, impedir a pro-
certo que é muito, muito mais do que só um vírus, agressivo pagação de uma qualquer doença de forma simples é pura e simples
e mortal. O ébola, acredite o leitor paciente, é um símbolo… um utopia. Até porque o resto do mundo se tem mostrado pouco preo-
símbolo para este mundo profundamente injusto, frio, calculista cupado com o falecimento crónico (parece até programado) de uns
e motivado por um objetivo apenas… o lucro. Vou passar a expli- milhares de africanos, por doenças evitáveis no mundo dito civiliza-
car esta tragédia em três atos, sem sequer entrar por descrições do. A atual preocupação com o ébola parece até hipocrisia ao estilo,
médicas, ou riscos preventivos. "parece que agora temos que fazer alguma coisa"…
ATO 1 – O cenário: África permanece o continente mais pobre
do mundo, em contradição com as suas vastas potencialidades A conclusão desta tragédia em três atos é, por certo, a seguinte: o
naturais. Durante séculos, essas riquezas foram exploradas, com ébola não é um problema de saúde. O ébola e outras entidades se-
pouco benefício dos autóctones. Aquando da descolonização, melhantes constituem um problema político. Esse problema terá,
ao contrário do esperado as populações ficaram bastante mais mais tarde ou mais cedo, que ser assumido de forma sistemática.
empobrecidas. A descolonização criou nos novos países elites de
super ricos e, infelizmente, na maioria dos casos, sem qualquer E em Portugal, estamos expostos? Conto a esse propósito a his-
preocupação de ordem social (ouso dizer mesmo, sem qualquer tória real de uma médica de família que mora na cidade mais
preocupação de ordem moral). africana de Portugal e, mesmo, da Europa: a Amadora, bem às
portas de Lisboa. Determinado casal, da Guiné-Bissau, recebeu
A delapidação continuou a ritmos nunca antes testados. As um sobrinho recém chegado da Guiné, via Senegal. Levam-no de
faces dos atuais "colonizadores" mudaram. Deixamos de ter os imediato ao médico e solicitam:
"odiosos" portugueses, para ter os sempre presentes defenso- – Doutô, chegou de África onte. Tem um dô e muita febre… Veja
res da democracia ocidental, com as suas multinacionais ex- tudo por favor…
tratoras de matérias-primas valiosas em grande laboração no
Continente Negro. Ele é o petróleo, pedras preciosas, madeiras Portugal – salta à vista – é um país certamente em risco. A amea-
raras, etc. Tudo se vende em África, até a dignidade. Daí que al- ça parece até mais grave do que a gripe A (que motivou um maci-
gumas potências do oriente, menos preocupadas com a demo- ço investimento). Os médicos e os enfermeiros estão na linha da
cracia, decidiram entrar de forma firme no mercado africano. frente e têm expressado esses alertas. Na Idade Média a peste ne-
Naturalmente muito pouca desta riqueza chega a quem dela gra mudou a sociedade, vamos ver o que acontecerá neste tempo
precisa, induzindo um gigantesco fluxo migratório, impossível digital em que o homem acreditou controlar todas as ameaças?
de conter e, espantosamente, incompreensível aos olhos dos
incrédulos europeus. Doc
ATO 2 – A componente social: A pobreza opressiva a que a
grande parte da população africana está votada a conhecer,
bem como outros fenómenos de ordem social, nos quais figura
de forma relevante a guerra endémica que caracteriza um con-
tinente onde "até Deus parece estar ausente", concentraram a
população em grandes cidades. Essas cidades caracterizam-se
por juntarem milhões de indivíduos sem as mais básicas condi-
ções sanitárias.
Trata-se de situações inimagináveis, sem água corrente, sem qual-
quer espécie de higiene, onde certamente não se vive… sobrevive-se,
no pior sentido que a palavra acarreta…
O Ocidente aqui tem estado presente, quer através de Organi-
zações Não Governamentais (ONGs) – que frequentemente fa-
zem a diferença entre a vida e a morte, para milhões – quer pelas
igrejas missionárias, também elas, tábuas de salvação para mui-
tos. Pouca desta atividade humanitária chega aos noticiários, ex-
ceto quando um anónimo funcionário das ONGs é trucidado em
direto na Internet, ou um qualquer missonário é abatido, claro,
por razões de pureza religiosa…
ATO 3 – A epidemiologia das doenças em África: Após os atos
1 e 2 facilmente que o Ato 3 só pode ter um título: tragédia.
Países que não conseguem assegurar a dignidade mínima dos
seus cidadãos, não têm capacidade para travar qualquer doen-
ça ou epidemia. Ora, epidemias e endemias (doenças sempre
presentes) há muitas em África. Da longa lista seleciono a malá-
ria, as múltiplas parasitoses e as ainda mais frequentes doenças
virais, controladas pela vacinação noutros lugares (poliomielite,
sarampo, etc).
NOVEMBRO 2014 29