Page 69 - Revista da Armada
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Parece impossível, mas aconteceu!
           Parece impossível, mas aconteceu!




           Numa prosa directa, singela, sem pitorescos nem arrebiques, conta-nos o  passou, não deixa que o remate da história fique bem claro. É que nós nos
         tenente Rocha Calhorda, (que mais tarde seria o almirante Rocha Calhorda,  lembramos muito bem de ter havido uma espécie de exposição de todas as
         director desta Revista) um acidente ocorrido a bordo do aviso “Gonçalves  peças e pecinhas do ASDIC, desde os complicados sistemas de
         Zarco”, em Lourenço Marques, onde por feliz coincidência estávamos tam-  transmissão/recepção de ondas sonoras às simples molas e parafusos, desdo-
         bém embarcados, nivelados pela patente e unidos por amizade que se man-  brando-se ao longo das madeiras do convés para que o sol e quantos irradi-
         teve vida fora.                                      adores eléctricos se puderam mobilizar, deixassem que aquelas peças todas
           O escrito narra o essencial e lê-se com agrado. Não é todos os dias que um  ficassem limpas e secas, sem ferrugens nem humidades resultantes do banho
         navio entra em doca seca e fica logo parcialmente alagado, como aconteceu  forçado de água salgada, e todas com os lembretes amarrados que haviam de
         com o Zarco; mas é com certeza caso único que, na mesma ocasião, por des-  permitir depois a sua montagem.
         cuidado escoramento da porta da doca, esta salta fora dos respectivos  Pois o tenente Calhorda, pouco mais que iniciado no uso do ASDIC, des-
         batentes e abre larga fenda por onde a água de fora entra em abundância.   fez e montou tudo, e o equipamento continuou em perfeito uso por toda a
           O navio ficou com a popa a flutuar, mas a proa afocinhada pela água do  comissão, que rematou na ida a Timor, onde o navio foi o primeiro a entrar
         compartimento do ASDIC e espaços anexos, que alagaram de novo.   após a rendição dos Japoneses, em 1945.
           Queríamos, todavia, aproveitar a ocasião para deixar aqui algumas                           S. Machado
         palavras que o Almirante Calhorda, por arreigada modéstia que nunca ultra-                          CMG

             m fins de 1943, o signatário, com mais  borda. Amarrado o navio dentro da doca,  nada pudéssemos fazer para o evitar.
             três oficiais, foi à Grã-Bretanha frequen-  cerca das 16.30 começou o seu esvaziamen-  Quando o navio assentou nos picadeiros,
         Etar um curso de luta anti-submarino (A/S)  to, conforme consta do “Livro do Oficial de  depois de esmagar uma parte do domo,
         de carácter operacional, de seis semanas de  Serviço”, e, então, vai começar a história que  deixou de entrar água no compartimento já
         duração, em que foram ministrados uns rudi-  pretendo contar.         alagado até cerca de 1,20 metros, porque o
         mentos sobre a parte técnica do material que  Verificando que ninguém se preocupava  “tronco”, caixa soldada no fundo, onde se
         se iria operar.                    com a posição dos “meus” prumos, comecei  recolhia o domo não permitia o escoamento
           Regressado a Lisboa, foi informado de que,  a importunar o patrão-mor, perguntando-lhe  natural.
         oportunamente, destacaria para o aviso  como é que ele sabia onde ficava o domo  Iniciou-se então uma faina, que durou até
         “Gonçalves Zarco” que se previa vir a largar,  do ASDIC e qual a distância entre picadeiros  às três horas da manhã do dia seguinte, esva-
         antes do Verão de 1944,                                                            ziando-se o compartimento
         para “longa comissão de                                                            por meio de baldes, lavan-
         serviço” em Moçambique.                                                            do com água destilada os
           Em dada altura, o navio,                                                         equipamentos que tinham
         que se encontrava em fa-                                                           estado mergulhados e se-
         bricos no Arsenal do Alfeite,                                                      cando-os em seguida com
         começou a instalar um                                                              irradiadores eléctricos.
         equipamento ASDIC (hoje                                                            Fomos deitar-nos julgando
         chamar-se-lhe-ia SONAR)                                                            merecer um justo repouso
         com que iria equipado                                                              sem pensar que... o pior
         para aquela comissão e o                                                           estava para vir.
         signatário foi destacado                                                             Com efeito, antes das
         para aquela unidade para                                                           04.00 horas fui acordado
         acompanhar os trabalhos                                                            pelo Cabo de quarto que
         como se fosse realmente                                                            me dizia que saltara a porta
         um técnico na matéria.                                                             da doca e o compartimento
           Em 29 de Abril o “Zarco” largou de Lisboa,  e se algum fora retirado; ante as suas  do ASDIC estava a inundar-se novamente.
         tendo chegado a Lourenço Marques em 3 de  respostas evasivas convenci-me de que nada  Acorri ao local, e verificando que o alaga-
         Junho, mantendo-se em Moçambique até 29  fora feito para evitar que o domo viesse a  mento ia a mais de meio e que nada se po-
         de Agosto de 1945, data em que partiu para  assentar num ou mais picadeiros. Assim,  dia fazer, mandei fechar a escotilha
         Timor, via Colombo, com outros três avisos.  pedi-lhe que parasse o esvaziamento da  estanque e aguardou-se novo esvaziamento
           Em 10 de Fevereiro de 1945, pelas 14.40,  doca até que o comandante fosse posto a par  da doca.
         o navio entrou na doca seca da Capitania do  da situação, ao que ele anuíu. Procurei o  Esclarece-se que a porta da doca não
         Porto de Lourenço Marques, sendo a primeira  comandante, pú-lo a par do que se passava e  “saltou” mas que abriu um pouco deixando
         vez que aí entrava um navio com instalações  solicitei autorização para retirar o oscilador  uma fenda de 30 a 40 centímetros através
         A/S que requeria cuidados especiais.  antes que fosse tarde de mais, autorização  da qual a doca se encheu sem mais prejuí-
           Para boa compreensão do que se vai seguir  que me foi concedida.    zos para o navio. Creio tratar-se de um facto
         é conveniente ter presente que o “domo” do  Desci ao compartimento do ASDIC  inédito, o de um navio se alagar dentro de
         ASDIC, dentro do qual funcionava o  enquanto o comandante subia ao convés,  uma doca seca.
         oscilador, verdadeiro coração do equipamen-  onde o patrão-mor o convenceu de que não  Esgotada a água salgada, esperou-nos
         to, ficava, quando recolhido, saliente do fun-  havia qualquer inconveniente para o navio  nova faina, desta vez de alguns meses, em
         do cerca de 20 centímetros.        em que se prosseguisse o esvaziamento da  que lavámos todos os componentes com
           O comando comunicara à Capitania que  doca, o que se fez, sem que eu fosse avisa-  água doce e os secámos com irradiadores
         havia necessidade de retirar um ou mais pica-  do da alteração. Entretanto, no comparti-  eléctricos, e em seguida, os desmontámos,
         deiros da doca por forma a garantir um  mento do ASDIC eu e todo o pessoal ( 1  peça a peça, para lhes tirar algum vestígio
         espaço livre de 1,80 metros (o dono do  cabo telegrafista e 3 grumetes de manobra)  de água, sal e ferrugem, para no fim os
         ASDIC tinha cerca de 1,60 m de comprimen-  preparámos tudo para içar o oscilador e  voltarmos a montar.
         to) e que os limites desse espaço do navio  quando este já ia a meio caminho, um forte     Rocha Calhorda
         seriam assinalados por prumos suspensos da  jacto de água começava a alagá-lo sem que              CALM
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 99  31
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