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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (29)
Uma Pizza Especial
Uma Pizza Especial
ndependentemente do assunto versado penhando um papel igualmente importan- já longínquo ano de Mil Nove e Oitenta e
ou do objecto da sua escrita, quem es- te na sua educação gastronómica. É dentro Oito, em que o J. S., completamente ator-
Icreve expõe-se, sobretudo, a si mesmo. dos seus muros que jovens comedores de doado pelos balanços dos primeiros dias da
É verdade. Mesmo referindo-se habitual- bife com batatas fritas (e do mais variado Viagem de Adaptação, desembarca, com
mente a outrem – e quem assina sem pseu- lixo pronto a comer) aprendem a apreciar alguns camaradas, em Portimão, dispondo-
dónimo tem de fazê-lo com imensa caute- outras vertentes da cozinha portuguesa, -se a repor a matéria expelida pela boca na-
la, de modo a evitar dissabores -, o escritor enquanto, no capítulo das bebidas, a cola queles dias com um compensador repasto
revela sempre um pouco de si, desnudan- e as cervejas são, progressivamente, subs- na Praia da Rocha, onde era suposto reinar,
do-se pouco a pouco, como se cada cróni- tituídas – ou, pelo menos, alternadas – por ainda, alguma animação (ah, que saudades
ca fosse uma peça de roupa que lhe sai do vinho branco, numa primeira fase, e, num do tempo em que o clima estival se prolon-
corpo. Esta exposição torna-se ainda mais estádio mais evoluído que muitas vezes só gava para lá de Setembro!). Como a malta
flagrante quando, por falta de assunto, se vê se atinge no fim do curso e de um provei- não dava, ainda, o devido apreço à boa
obrigado a relatar episódios embaraçosos toso estágio de embarque, pelo belo e aro- mesa e o dinheiro não abundava, mesmo
ou, no mínimo, muito pouco abonatórios mático “tintol”. reforçado com o magro subsídio de embar-
para a sua pessoa. Claro que o tenrinho J.S., ainda em ple- que (e, além disso, havia que poupar para
Mas que surpreendente e compromete- na adolescência, se encontrava na fase mais a ida à discoteca), o grupo dirigiu-se a uma
dora revelação estará este “artista” prestes primária da evolução copo-comensal. Na pizzaria, que para o J.S. era uma completa
a fazer?, perguntar-se-ão os meus intrigados verdade, era mesmo muito “má boca” (por novidade (parece mentira, mas naquela al-
leitores. Começo já por desiludi-los refe- favor, não confundir com “má-língua”), sen- tura não era assim tão invulgar). O pior foi
rindo que não vou falar de desvios de fun- do simplesmente incapaz de ingerir certos quando ele, esquisito como sempre, passou
os olhos pela ementa e não encontrou uma
única variedade de pizza em que todos os
ingredientes fossem do seu agrado. A que
melhor se prestava ao seu sensível palato
era a pizza com cogumelos e não teria he-
sitado na escolha se não fosse um pequenís-
simo pormenor: não gostava de cogumelos!
Pensou um pouco e, quando a empregada
de mesa se aproximou para tomar nota dos
pedidos, encomendou, por fim:
- Uma pizza com cogumelos… sem co-
gumelos.
A rapariga ficou, como é óbvio, comple-
tamente estarrecida com aquela inédita op-
ção e, depois de um breve instante de boca
desmesuradamente escancarada e de olhos
arregalados a extravasar os orifícios orbitais,
ainda perguntou, timidamente “Tem a cer-
teza?”. “Claro que sim.”, tornou-lhe o man-
cebo, e como o cliente tem sempre razão,
lá anotou a encomenda, que não tardou a
satisfazer. O Chef é que deve ter trepado as
paredes da cozinha!
O bizarro episódio, conquanto gerador
momentâneo de alguma galhofa, cedo aca-
bou por cair no esquecimento e jamais te-
dos, de tráfico de influências ou de outras e determinados alimentos. De tal modo ria sido resgatado da empoeirada gaveta do
ilegalidades de semelhante porte, mas tão- assim era que, passados, já, dez meses da eterno Olvido não fosse o masoquismo de
-somente de uma situação completamente sua entrada para a “Briosa” se viu comple- um certo autor que, pressionado para escre-
idiota protagonizada por este desinspirado tamente perdido numa recepção oferecida ver rapidamente “qualquer coisa”, se torna
cronista durante o curto e verdíssimo perío- pelo Cônsul de Portugal em Marselha, toda capaz dos actos mais desesperados. Outras
do em que esteve investido do estatuto de ela à base de queijos – que ele detestava – e situações, porém, caem de tal modo no goto
candidato à Escola Naval. Para não tornar de vinhos – que ainda não apreciava. Hoje, colectivo que continuam a ser comentadas
o relato demasiado penoso, aliviemos um naturalmente, “chamava-lhes um figo”, mas passados vinte ou trinta anos. Tal foi o caso
pouco o fardo do narrador permitindo-lhe, naquela altura viu-se na contingência de ta- de um camarada cuja capacidade de im-
a partir daqui, designar a sua anterior en- par o vazio no estômago com um furioso proviso o fez brilhar sobremaneira durante
carnação por “Candidato J.S.”. ataque aos hamburgers de uma conhecida um atribulado embarque de fim-de-semana.
Ora, devo dizer, antes do mais, que, na marca norte-americana com nome escocês Mas isso já é outra história…
minha modesta opinião, a Escola Naval não (que, por incrível que pareça, só chegaria a Z
restringe a sua missão à formação académi- Portugal dali a três ou quatro anos). J. Moreira Silva
ca e marinheira dos futuros oficias, desem- Mas regressemos ao mês de Outubro do CTEN
REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2008 31