Page 321 - Revista da Armada
P. 321

DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (29)



                            Uma Pizza Especial
                            Uma Pizza Especial



            ndependentemente do assunto versado  penhando um papel igualmente importan-  já longínquo ano de Mil Nove e Oitenta e
            ou do objecto da sua escrita, quem es-  te na sua educação gastronómica. É dentro  Oito, em que o J. S., completamente ator-
         Icreve expõe-se, sobretudo, a si mesmo.  dos seus muros que jovens comedores de  doado pelos balanços dos primeiros dias da
         É verdade. Mesmo referindo-se habitual-  bife com batatas fritas (e do mais variado  Viagem de Adaptação, desembarca, com
         mente a outrem – e quem assina sem pseu-  lixo pronto a comer) aprendem a apreciar  alguns camaradas, em Portimão, dispondo-
         dónimo tem de fazê-lo com imensa caute-  outras vertentes da cozinha portuguesa,  -se a repor a matéria expelida pela boca na-
         la, de modo a evitar dissabores -, o escritor  enquanto, no capítulo das bebidas, a cola  queles dias com um compensador repasto
         revela sempre um pouco de si, desnudan-  e as cervejas são, progressivamente, subs-  na Praia da Rocha, onde era suposto reinar,
         do-se pouco a pouco, como se cada cróni-  tituídas – ou, pelo menos, alternadas – por  ainda, alguma animação (ah, que saudades
         ca fosse uma peça de roupa que lhe sai do  vinho branco, numa primeira fase, e, num  do tempo em que o clima estival se prolon-
         corpo. Esta exposição torna-se ainda mais  estádio mais evoluído que muitas vezes só  gava para lá de Setembro!). Como a malta
         flagrante quando, por falta de assunto, se vê  se atinge no fim do curso e de um provei-  não dava, ainda, o devido apreço à boa
         obrigado a relatar episódios embaraçosos  toso estágio de embarque, pelo belo e aro-  mesa e o dinheiro não abundava, mesmo
         ou, no mínimo, muito pouco abonatórios  mático “tintol”.              reforçado com o magro subsídio de embar-
         para a sua pessoa.                   Claro que o tenrinho J.S., ainda em ple-  que (e, além disso, havia que poupar para
           Mas que surpreendente e compromete-  na adolescência, se encontrava na fase mais  a ida à discoteca), o grupo dirigiu-se a uma
         dora revelação estará este “artista” prestes  primária da evolução copo-comensal. Na  pizzaria, que para o J.S. era uma completa
         a fazer?, perguntar-se-ão os meus intrigados  verdade, era mesmo muito “má boca” (por  novidade (parece mentira, mas naquela al-
         leitores. Começo já por desiludi-los refe-  favor, não confundir com “má-língua”), sen-  tura não era assim tão invulgar). O pior foi
         rindo que não vou falar de desvios de fun-  do simplesmente incapaz de ingerir certos  quando ele, esquisito como sempre, passou
                                                                               os olhos pela ementa e não encontrou uma
                                                                               única variedade de pizza em que todos os
                                                                               ingredientes fossem do seu agrado. A que
                                                                               melhor se prestava ao seu sensível palato
                                                                               era a pizza com cogumelos e não teria he-
                                                                               sitado na escolha se não fosse um pequenís-
                                                                               simo pormenor: não gostava de cogumelos!
                                                                               Pensou um pouco e, quando a empregada
                                                                               de mesa se aproximou para tomar nota dos
                                                                               pedidos, encomendou, por fim:
                                                                                 - Uma pizza com cogumelos… sem co-
                                                                               gumelos.
                                                                                 A rapariga ficou, como é óbvio, comple-
                                                                               tamente estarrecida com aquela inédita op-
                                                                               ção e, depois de um breve instante de boca
                                                                               desmesuradamente escancarada e de olhos
                                                                               arregalados a extravasar os orifícios orbitais,
                                                                               ainda perguntou, timidamente “Tem a cer-
                                                                               teza?”. “Claro que sim.”, tornou-lhe o man-
                                                                               cebo, e como o cliente tem sempre razão,
                                                                               lá anotou a encomenda, que não tardou a
                                                                               satisfazer. O Chef é que deve ter trepado as
                                                                               paredes da cozinha!
                                                                                 O bizarro episódio, conquanto gerador
                                                                               momentâneo de alguma galhofa, cedo aca-
                                                                               bou por cair no esquecimento e jamais te-
         dos, de tráfico de influências ou de outras  e determinados alimentos. De tal modo  ria sido resgatado da empoeirada gaveta do
         ilegalidades de semelhante porte, mas tão-  assim era que, passados, já, dez meses da  eterno Olvido não fosse o masoquismo de
         -somente de uma situação completamente  sua entrada para a “Briosa” se viu comple-  um certo autor que, pressionado para escre-
         idiota protagonizada por este desinspirado  tamente perdido numa recepção oferecida  ver rapidamente “qualquer coisa”, se torna
         cronista durante o curto e verdíssimo perío-  pelo Cônsul de Portugal em Marselha, toda  capaz dos actos mais desesperados. Outras
         do em que esteve investido do estatuto de  ela à base de queijos – que ele detestava – e  situações, porém, caem de tal modo no goto
         candidato à Escola Naval. Para não tornar  de vinhos – que ainda não apreciava. Hoje,  colectivo que continuam a ser comentadas
         o relato demasiado penoso, aliviemos um  naturalmente, “chamava-lhes um figo”, mas  passados vinte ou trinta anos. Tal foi o caso
         pouco o fardo do narrador permitindo-lhe,  naquela altura viu-se na contingência de ta-  de um camarada cuja capacidade de im-
         a partir daqui, designar a sua anterior en-  par o vazio no estômago com um furioso  proviso o fez brilhar sobremaneira durante
         carnação por “Candidato J.S.”.     ataque aos hamburgers de uma conhecida  um atribulado embarque de fim-de-semana.
           Ora, devo dizer, antes do mais, que, na  marca norte-americana com nome escocês  Mas isso já é outra história…
         minha modesta opinião, a Escola Naval não  (que, por incrível que pareça, só chegaria a               Z
         restringe a sua missão à formação académi-  Portugal dali a três ou quatro anos).          J. Moreira Silva
         ca e marinheira dos futuros oficias, desem-  Mas regressemos ao mês de Outubro do                   CTEN
                                                                              REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2008  31
   316   317   318   319   320   321   322   323   324   325   326