Page 257 - Revista da Armada
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I  Nota de Abertura










                  50 anos de serviço






                         Esta Nota é dedicada e presta        mais de cumprir horârios, nem aturar as rabugices
                         homenagem à massa anónima            de chefes, parceiros ou subordinados ... represen-
                         dos que assentando praça             ta uma boa compensação para o amargo da idade
                                                              e duma vida de trabalho_
                         na Armada lhe dedicam
                                                                 Mas,  na Marinha tudo é  diferente. Sobretudo
                         inteiramente as suas vidas,          para aqueles que nunca foram senão marinheiros,
                         servindo-a ... só a ela.
                                                              a passagem à reforma atinge proporções de catâs-
                                                              trofe.  Sentem-se completamente  vazios  e  deso-
                  e vez em quando leio nos jornais nqtÍcia de   rientados, sem saber como hão-de matar o tempo.
                  ter sido prestada homenagem a  funciona-    Coleccionar medalhas, selos, ou porta-chaves, fa-
            D rias que completaram 50 anos de serviço a       zer as compras diârias para a  casa, ajudar a  mu-
            determinada empresa ou organização, o que pres-   lher  nos trabalhos  domésticos,  passear nos  jar-
            supõe ser fenómeno raro e digno de registo.       dins pUblicas. levar o cão à  rua, ou ir ver as mon-
               Salvo  o  devido  respeito,  o  caso faz-me  sorrir   tras na Baixa ...  nada disso compensa o abandono
            face  â.  constatação do que se passa na Marinha.   do  mar,  dos  navios  e  de tudo quanto lhes  estâ
            que tem muita gente nessas condições.  Na sala    ligado.
            das estrelas,  por exemplo, como chamam à  que       Para os marinheiros, que dormiram embalados
            existe na messe de oficiais destinada aos almiran-
                                                              pelas vagas, entre lençóis azuis de céu e âgua, que
            tes, não há nenhum dos reformados que ali almoça   navegaram nos sete mares e desembarcaram em
            que não tenha esses cinquenta ou mais anos de     todos os continentes, que conviveram com gente
            serviço  efectivo.  E  se  contássemos a  alguns  as   de todas as raças e de todos os credos, que viram
            percentagens por serviço em campanha, nos sub-    o mar em furia, aprendendo a respeitâ-Io e a domi-
            marinos,  na  aviação  naval,  nos  mergulhadores,   nâ-lo, que contemplaram as estrelas no mar alto e
            etc.,  iriamos  encontrar  certamente  alguns  com   em plena treva, que suportaram a  incomodidade
            quase tantos anos de serviço como de idade! E ne-  da vida de bordo, que correram perigo de encalhe,
            nhum teve, que eu saiba, festa de homenagem ou    incêndio e  até de naufrâgio ...  pôr ponto final  em
            noticia  nos  jornais.  Tudo se passou  em familia,   tudo isso, de repente,  não é  bem a  mesma coisa
            com louvor e  condecoração, com wna das coisas    que um médico deixar o consultório, wn juiz o tri-
            só, ou sem nenhuma.
                                                              bunal, um operârio a fâbrica ... Digam o que disse-
                                                              rem, é muito diferente!
                                                                 Se querem  provas,  lembro-lhes algumas  das
               o  que foi  dito  sugere-me algumas considera-  coisas jâ faladas nesta Revista:
            ções acerca da enorme  diferença  de significado     Aquele ex-marinheiro que encontrei a  traba-
            entre a  reforma dos trabalhadores civis C*) e a dos   lhar no campo e que, depois de desfiar o seu rosâ-
            marinheiros. Quanto aos primeiros, e tanto quan-  rio  de  saudades  da  Marinha,  apontou  para  um
            to me tem sido dado observar, a reforma, ou apo-  campo de centeio que a  brisa fazia ondular, per-
            sentação, é uma meta que se atinge com certo pra-  guntando: não é tal e qual o mar?! E aquele outro
            zer. Deixar de trabalhar ou dedicar-se a qualquer   que, deslocando-se numa motoreta, pela marginal
            actividade de que  se goste ou dê  lucro;  não ter   do rio Douro. vendo um navio de guerré'  a  sair a
                                                              barra, se ficou a olhar para ele com os olhos rasos
                                                              de âgua,  até desaparecer no  horizonte.  E  ainda
               (') Falamos apenas da pane moral da questão. mas não
                                                              aquele sargento reformado a quem jâ não serviam
            queremos deixar de referir. ainda que ao de leve. o que se pas-
            sa na pane maten·al. Neste aspecto. sabe-se que alguns traba-  as fardas e mandou fazer uma nova, de propósito.
            lhadores prIVilegiados,  de cenas empresas pUblicas e priva-  para levar na sua última viagem ...
            das. ao passarem ii reforma ficam com os mesmos vencimemos   Ser marinheiro, acrediteril os que o não são, é
            dos seus colegas ao serviço - não vale a pena dar exemplos   muito diferente de ser outra coisa qualquer. É ter
            porque sào muitos. Ao contrário. os marinheIros. bem como os   nos olhos a  cor do céu e  no coração a  imagem do
            outros militares. militarizados. funcionários pUblicos e alguns   mar e de tudo que ele lhe deu - bom e mau.
            mais. quando passam à relonna ou aposentação vêem os seus
            vencimentos degradar-se ano a ano. chegando-se a situações
            verdadeiramente absurdas. Embora nem só de pão viva o ho-
            mem. isto lambem dói ...


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