Page 285 - Revista da Armada
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existência agitada pelo combate em prol da República e   encorporar  o  Vasco  da  Gama  no  numero  das  minhas
        da liberdade. Esteve por isso preso, conheceu o degredo   vicessitudes.
         e o exi1io.                                            Que me iria  succeder?
            Foi  presidente  do  1. o  Ministério  Constitucional  da   Segundo as minhas prevenções,  ou superstições, eu
         República e  nosso embaixador em França entre 1910 e   ia  ficar  encerrado  no  Vasco  da  Gama.  Mas,  em  que
         1923. Neste cargo desenvolveu importante campanha a   circumstancias?  Occorriam-me  os  transes  da  fragata
         favor  do reconhecimento e dignificação do regime repu-  Virginia, que conduziu á Nova Cafedonia os condemnados
         blicano e da intervenção de Portugal na I Grande Guerra,   da  Communa.  Razoavelmente,  o  local  que  me  estava
         tendo-se demitido duas vezes como protesto, face a situa-  reservado para me allojar no Vasco da Gama era· o porão.
         ções  ditatoriais  em  Portugal.  primeiro  com  o  general   Estas preoccupaçôes não tinham entrado, no entanta,
         Pimenta de Castro (1915), depois com o major Sidónio Pais   em minha alma, no estado de panico e assim foi que subi
         (1917-18).  Nomeado  novamente  primeiro-ministro  em   assaz galhardamente as escadas do navio.
         1915, não chegou a tomar posse por ter sido alvo de um   O meu accesso ao Vasco da Gama devia-me reservar
         atentado.                                           bem  agrada  veis  impressões.
            Em  1923 reformou-se e acabou por falecer dois anos   Algumas vezes  me  tem  succedido não ser acolhido
         depois em Lisboa.                                   com affabilidade ao portaló dos paquetes em que tenho
            As IICartas Políticas!! foram  uma publicação semanal   viajado. Algumas vezes, o official que costuma estar n'esse
         entre 1908 e  1910,  poderosa «arma de guerra»  contra a   logar e que sempre me dá a impressão de um porteiro de
         monarquia, mistura de perfume e de ácido, conforme as   theatro,  não  tem  para  os  passageiros  um  semblante
         designou  o  jornalista  Rocha  Martins  para  expressar a   acolhedor e no acto de lhes pedir o seu bilhete de passa-
         elegância e ironia ferozes do seu autor. Eram esperadas   gem  parece  consideral-os  mais  como  um  incommodo
         com  grande  ansiedade  pelo  público,  que  fazia  esgotar   contrabando do  que como  uma facil e legitima carga.
         edições de 30 mil exemplares, tiragem elevadíssima para   A  bordo do Vasco da Gama - eis em  que consistiu a
         a altura. Os seus ataques, sempre contundentes, nunca   minha primeira, agradavel surpresa  - fui acolhido como
         perdíam  uma  postura  civilizada.  Sugerindo  ao  rei  que   nunca o tinha sido a bordo de navio algum. Eu era - não
         abdicasse ou às suas eventuais noivas que desistissem de   o devo esquecer - um preso. No entanto, o primeiro acto
         monarca com trono tão periclitante, denunciando corrup-  do ofhcial que me recebeu foi· estender·me a mão.  Não
         ções ou vaticinando a breve implantação da república, as   sei se este  gesto  affectuoso quebrou  a  linha severa  da
         «Cartas» minaram as instituições, congregaram entusias-  situação.  Em  mim,  quebrou todas as prevenções.
         mos, deram alento a quantos lutavam pelo fim da monar-  Uma vez a bordo,  vi que tudo se passava por um modo
         quia. Muitas das reuniões que prepararam a revolução se   differente do que eu imaginara. Não tive por allojamento
         fizeram  num  2.  0   andar  da  rua  do  Arco  de  Bandeira,   o porão e tive uma cabine de officia/ e,  quando n 'essa noite
         escritório das «Cartas Politicas)).                 me deitei nos lenç6es frescos da  minha couchette, nada
            Uma personalidade vincada, um perfil aristocrático, a   me lembrou que estava preso no Vasco da Gama. A m.inha
         finura da observação, são marcas de João Chagas.  E de   impressão foi,  mesmo, a  de  que ia fazer uma  viagem,  a
         tudo quanto escreveu, as «Cartas Politicas» são disso um   bordo de  um paquete.
         bom exemplo.                                           Existe  um  regimen  disciplinar  para  os  individuas
            De entre as quase cem cartas publicadas, a que ora   presos a bordo dos navios de guerra? Sem  duvida; mas,
         se mostra foi uma verdadeira excepção pelo seu carácter   para mim e para os meus companheiros, esse regimen não
         de testemunho não politico.                         existiu.
                                                                Eu  não sou  um  madrugador.  A  bordo do  Vasco  da
                                                             Gama  prolonguei  todos  os  meus  habitas  de  matinal
                                 *                           preguiça. Pela manhã,  um moço serviu-me no camarote,
                                                             o  caffé.  Mais  tarde,  um  outro  serviu-me  o  almoço  na
            Eu conheço o Vasco da Gama, não por haver passado   camara dos o[ficiaes, assim como mais tarde, o mesmo
         a  bordo d'esse  navio de  guerra  uma  tarde  de  festa,  de   me serviu  o jantar.
         lunch e de valsa,  mas por o haver habitado durante um   No intervallo d'estas refeições,  verdadeiramente vi11e-
         longo mez,  de  dia  e  de  noite, no pluviOSO mez de Abril   giaturei a  bordo do  Vasco  da  Gama.
         de  ha  dezenove annos.                                Abril  corria  chuvoso,  mas  tepido.  Rompiam,  entre
            Acontecimentos que cada vez se tomam mais remotos,   bategas d'agua, formosos dias de primavera. Eu vestia um
         trouxeram-me ao Tejo em um dos primeiros dias d'aquelle   casaco de flanella, calçava  uns sapatos brancos,  punha
         mez, e o que succederia a qualquer outro que,  em igual   na  cabeça  um  bonnet  e,  mal  subia  ao  convez  ainda
         dia,  entrasse no Tejo, seria desembarcar no Caes do Sodré,   humido da  baldeação, ia-me estender,  com  um livro na
         ou  em  Alcantara  e  ir,  precedido  de  algumas  malas,   mão,  n 'uma das commodas banquetas do reducto de ré,
         allojar-se no Central, ou no Borges. Eu,  orientado por um   ou então, se o corpo não me pedia feitura, mas contem-
         destino differente, al/ojei-me no Vasco da Gama, o que não   plação, ia debruçar-me no rio,  mergulhar na amplidão do
         quer dizer que não levasse commigo as minhas malas,   espaço,  respirar com  delicia a brisa salgada.
         porque,  em  todas  as circumstancias da  vida,  as mais   Durante o dia,  como nenhum ponto do navio me era
         precarias, o homem sobrecarrega-se de muteis trambolhos.   vedado,  percorria·o  todo,  estudava  o  mechanismo  da
            Quando a lancha a vapor que me conduziu ao Vasco   artilharia, seguia com interesse os exercicios de instrução.
         da  Gama  lançou  o  craque á  escada  de estibordo,  e  eu   Posto  que pn·sioneiro,  a  minha liberdade e a  dos meus
         considerei,  erguendo  os  olhos,  a  structura  aggressiva   companheiros, a  bordo, era i/limitada. A mim, nada me
         d'esse  vaso  de  guerra,  confesso  que  me preparei para   lembrava  que a perdera.

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