Page 286 - Revista da Armada
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Ao caJtir da tarde partia o ultimo amigo que viera Quando deixei o [nelia não tive para esses homens excel-
ver-me. Eu ficava na amurada a acenar-lhe com um lenço lentes senão palavras de reconhecimento.
para o bote que o conduzia a terra. Depois, içavam·se os N'esses barcos me tomei de uma viva sympatia pelos
pharóes, accendiam·se as luzes em baixo, na camara, e officiaes de marinha.
eu descia a paJes!Tar com o oflicial de serviço antes de Eu não sou uma natureza guerreira e aprecio, em geral,
me recolher, o que só succedia depois da meia noite. muito pouco as artes da guerra, o que quer dizer que o
Nunca fui regulamentado, nunca fui advertido, nunca prestigio do uniiorme exeIce sobre mim uma influencia
fui incommodado. A vida, a bordo d'esse navio de guena, extremamente moderada; mas, justamente um uniforme
parecia aos meus vinte e seis annos, verdadeiramente de marinha parece·se Uio pouco com um uniforme guer-
aprazivel. Do tempo que ali passei conservo a mais sabo- reiro, que um oflicial de marinha lembra-me o menos
rosa recordação. Algumas vezes, em Africa, e nos maus passiveI a guerra e o seu espalhafato mavortico. N'um
sitios por onde andei com os ossos, recordei com saudade tempo em que os soldados ainda usam couraças, como
o Vasco da Gama. ver a guerra n 'um moço de SObrecasaca, que olha, com
Dois anos depois, e em virtude de circumstancias um binoculo - o mar?
intimamente relacionadas com aqueJlas que me levaram Eis, porém, justamente, onde estA o prestigio dos
para bordo do Vasco da Gama, fui levado para bordo do o{[jciaes de marinha - no mar!
lndia, que estava enUio fundeado no DOUTO. O soldado á um homem que algumas vezes se bate
Ahl ahi a situação foi mais apertada. A bordo do Vasco e morre. O marinheiro é o homem que se bate todos os
da Gama gosei, como disse, os privilegios de uma liber- dias e todos os dias es~ exposto a morrer, e não ha
dade illimitada. A bordo do lndia estive incommunicavel. existências mais prestigiosas do que aqueJ/as que a cada
Pudera! o caso não era para menos. lmagine-se! - O passo perigam.
govemo, que me suppunha em Paris a gosar as delicias Ver seguir o homem do mar para o seu navio, é ve-Io
do exilio, acabara de me descobrir no Porto. O que estava seguir para a morte. A manhlJ estA azul, o mar estA
eu a fazer no Porto e porque não estava no meu logar de bonançoso. Subito, escurece. O que é? Para nós, é um
exilado e desempenhando as minhas funções entre a aguaceiro que começa e de que nos abrigamos sob um
Magdalena e a Bastilha? Resumindo: fui mandado para guarda-chuva, ou no portal de uma escada. Para o homem
bordo do lndia, enquanto não era novamente mandado do mar, é uma batalha que começa. Em todo o homem
para a Africa, o que, de resto, me succedeu oito dias do mar se suppoo existiI um heroe, porque no mar nao
depois. Não esquecerei nunca que se encanegou da é possivel a cobardia. Do mar nao se foge. Quando o mar
missão de me embarcar outra vez para essas plagas, o offerece batalha é preciso acceitAl-a e vencer, ou morrer.
actual secretArio da camara municipal republicana de Os marinheiros trazem sempre comsigo um pouco de
Lisboa, Pedroso de Lima. Tudo se paga n'estemundo. LA fulgor heroico.
estA a servir a republica! O tempo que passei 8 bordo dos nossos navios de
No entanto. ainda d'esta passagem por mais um barco guerra -porque estive em outros · approximou-me d'esses
de guerra portuguez, não conservo uma recordaçlJo má, homens e fez com que lhes licasse querendo mais e de
e conseNO, ao contrário, uma bem reconhecida lem- uma forma pessoal. O olheial de marinha realisa a mais
brança. bella associação de attributos masculinos que podem
O commandante d'esse navio já moneu. Tinha um tornar attrahente o homem - a virilidade e a gentileza.
appelido hespanhoJ - Sanchez de Gusman. Recel)era Nunca vi um ofhcial de marinha que tivesse um ventre
ordem de me manter incommunicavel e isso fez, mas de de major. O mar nlJo deixa criar barriga. E' raro o oflicial
que modo o fez! Com que discreta siympathia me disse de marinha que nao seja, ou não procure ser amavel. O
. Tenha paciencia! SAo instrucçõesl E como me parece, tempo de Jean Bart passou. Antes de enuar em batalha,
ainda, ouvir-lhe murmurar, franzindo o sobr'olho: . Não é o convez de um navio de guerra é muitas vezes um salão.
esta a nossa missão! Já a bordo do Vasco da Gama eu Pensar que esses homens de tanta sociabilidade e amabi·
ouvira dizer: Nós não somos policias! lidade serão os que, dentro em pouco, bramirllo vozes df
No India, como no Vasco da Gama, occupei uma commando entre dois infinitos - o do céu e o da terra!
cabine de ofticial, cuja porra esteve sempre aberta, embora Encontrei n 'e1/es a força e, ao mesmo tempo, a urba·
diante d'ella passeiasse a necessária sentinella. Eu não nidade. A responsabilidade marca o semblante humano.
sou um gluUio, mas reconheço que a bordo d'esse barco Todos os homens que commandam tem na face um vinco.
me preocupou o problema da minha subsistencia. Assim Os ofliciaes de marinha tem esse vinco - profundo. A sua
que me encontrei na cabine onde devia passar uma longa responsabilidade é máxima. O general, no campo da
e aborrecida semana, pensei commigo: Como vae ser isto batalha, divide a sua responsabih·dade. A responsabilidade
aqui? É que· deixem·me fazer esta conhdencia - de todas do ofliciaJ de marinha é exclusivamente sua. Só, na ponte
as provaçOOs da prisáo, a unica que me inquieta é o do seu navio, esse homem está entregue ás suas próprias
rancho. Eu não fuj educado n 'uma escola spanana. C energias, como nenhum outro homem. Esta escola de
rancho atterrame. responsabilidade tempera·lhe admiravelmente o caracter.
Tudo, porém, devia correr maravilhosamente a bordo A sua alma liberta·se de todas as servidoos, ou senão de
do lndia, como maravilhosamente tinha corrido a bordo todas, de um grande numero d'eJJas. Em terra andamos
do Vasco da Gama. Durante essa semana, os officiaes do um pouco de gatas. O mar dá azas.
lndia mantiveram·me principescamente. Todos os dias
tive o meu almoço e o meu jantar, que era o d'eJles e
nunca, ao caffé, elles deixaram de me mandar pelo moço ln ..MEMÓRIAS do TEMPO que PASSOU.· cDedicado 80 vfce-8lmiranUl
que me servia, um calice de chartreuse e um charuto. carlos CIndida das Reis relembrando a sua entrada no Par/amenfOo
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