Page 205 - Revista da Armada

desgraçado acabasse por adoecer a valer.
à míngua de alimentos e cuidados. Assim
foi feito, mas parece-me que ele nem deu
então pela mudança, em tal estado
estava.
Logo que o tempo começou amai-
nando um pouco, pennitindo assim que
a vida de bordo fosse mais nonnal, al-
guns tenentes, sabedores do estado las-
timoso do pobre médico jazendo na
enfermaria, logo resolveram ir ali visitá-
-lo. a ver se ele melhorava e se animava
um pouco mais.
Entrando na botica, viram-no esten-
dido na cama, imóvel e de olhos fecha-
dos, mais se assemelhando a um cadáver
do que a um vivo. tão abatido estava.
Falaram-lhe, procuraram despertar-lhe a
atenção com facécias, creio mesmo que
o sacudiram, mas ele a nada reagiu, nem
os olhos se lhe abriram, nem os lábios
sorriram, nem um dedo moveu. Era um
verdadeiro morto provisório.
Acontecera, porém, que o enfennei-
ro - que então estava tão enjoado como
o respectivo chefe - havia levado para
bordo, à partida de Lisboa, um pintas-
silgo. numa gaiola que ficara na botica.
O passa rito era invulgannente engraça-
do e estimado por todos, por se ter ha-
bituado a andar sempre por ali solto.
ficando a gaiola abena, e mostrando as-
sim estar muito bem aclimatado e domes-
Licado.
Como os amigos não conseguiam
que o médico desse o mínimo sinal de
vida, foram observando O ambiente e
repararam que a gaiola ainda ali estava,
mas que o pintassilgo do enfenneiro
tinha desaparecido.
Intrigados com o caso, interpelaram
outra vez o doutor, dizendo-Ihe:
- Ouve lá, doutoninho. o que é fei-
to do pintassilgo do teu enrenneiro, que
não o vemos aqui?
Só então o pobre mánir do enjoo teve
uma reacção. Abriu um dos olhos. fez
uma careta de agonia e desespero, e
declarou, convencido.
- O pintassilgo!. .. O pintassilgo é
que teve juízo! ... Deixou-se morrer! ...
Dito iSlo. vollou à anterior imobili-
dade e SÓ ressuscitou depois do navio
já ler entrado a barra de Lourenço
Marques.
O pintassilgo, porém. é que nunca
ressuscitou, pois esse morrera a valer,
com pena de todos a bordo.

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