Page 15 - Revista da Armada
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              a sua  riqueza  multif<lcetada,  o Homem é estudado cm   truir a sua unidade, distingue nele dois campos, de vida c de
              várias ciências. A sua anatomia e fisiologia revelam afi-  adesão.  Autónomo na  esfera das coisas  temporais, lião poderá
        N nidades estruturais com oulros seres vivos de distintos   esquecer, no curso do  tempo, a  sua  natureza, a sua  vocação
        grupos sistemáticos.  E não só a sua morfologia  mas também O   sublime e superior destino.  Há o aquém e  há  o além. Na  vida,
        seu quadro de enfermidades  poderão ser estudados noulros   não se deve perder de vista o seu fim, e informá-la de entusias-
        seres vivos, dada a comunidade existente.              mo,  no sentido original desta  palavra,  isto  é,  meter  Deus  por
         A  Biologia  não se contenta  em  classificar  nominalmente os   dentro. A expectativa dos bens futuros, o sentido da Alinnça, a
        organismos, como por mero coleccionismo. Revela a relação de   coerência e ° testemunho, serão sempre ideias fundamentais e
        um organismo com  Qutros,  as condições e  leis do seu  apareci-  mobilizadoras.
        mento e os processos de evolução.  Esta  ciência  tem  também,   Também é necessária uma  boa dose de paciência. Na  traves-
        por isso. muito de História Natural.                   sia  do deserto, os judeus julgavam que era para  pouco tempo.
         Admitida a criação do mundo. a evoluç,io  não é negada  por   Demoraram quarenta anos. Tiveram se suportar o calor e a ari-
        esse  facto.  Pelo contrário,  poderá ser a explicação e a  realiza-  dez, a luta contra o inimigo, as picadas das serpentes, as rivali-
        ção daquela. Se se pensa  num mundo cm evolução, há que ter   dades entre as tribos e,  no  meio de grandes privaçõcs, até sen-
        presente que todll  II ciência  possível supõe uma naturezô cons-  tiram saudades das cebolas do Egipto.
        tituída  em suas leis  e  propriedades, e este facto  postula  uma   Mas muitos entraram na Terra Prometida.
        ulterior explicação.  A criação concebe-se como algo que prece-  A fé começa por ser um apelo, e nunca mais deixa de ser um
        de a evolução, no tempo.  A evolução,  por definição, é tempo-  sonho. Tem muito de aventura, não, como é evidente, no senti-
        ral, c  a criação, também  por definição, situa-se no  limite  do   do que vulgarmente se dá a esta palavra, senão num ou Iro, ori-
        tempo.                                                 ginal e  próprio, ou seja, em direcção às  coisas que hão-de vir.
         A evolução converte a criação em História  e  projecta-a  para   Neste campo,  há  mais  razões  para  agradecer do que para
        o  futuro.  Por isso, a  ideia  de evolução só exclui  a  criação   pedir.
        semanticamente, como a noção de noite exclui a de dia.   Sendo a  verdade essencialmente una,  temos de reconhecer
         Pensava-se que as afirmações "o Homem apareceu  por evo-  que são múltiplas, e até  por vezes contraditórias,  as  opiniões,
        lução orgânica" e "foi criado por Deus" eram irredutíveis e se   também sobre esta problemática. O Homem apresenta-se como
       exclufam  mutuamente. Sabe-se,  porém, que estas proposições   algo  próprio da  natureza.  produto da  dinâmica desta, ou da
        não  s.io  fechadas.  Uma  e outra  focam  ângulos  diferentes dô   sua evolução, mas a  natureza não o explica totalmente. Dentro
        realidade ou do problema.  As duas afirmações  podem encon-  da  evolução, apresenta  singularidades  inéditas. Não cabe em
        trar-se numa síntese superior.                         fórmulas.  A sua capacidade extra-Sensorial e  uUra-biológica, a
         Também  aqui se aplicará  o  sábio  pensamento de  Pascal.   criação simbólica, o pensar no absoluto, o espírito que se auto-
        Dizia  este simpático  cientista que "a  fonte  de  todos os erros   -afirma na liberdade, a opção na  esfera da consciência, o senti-
        reside  no facto de se julgarem irreconciliáveis certas  verdades   do da moralidade, não cabem na Química ou na  Biologia.
       que apenas são, ou  parecem ser, opostas".  A origem do erro   O  Homem  não conhece a sua fórmula.  Estâ  manifestamente
       será, assim, a mutilação da verdade. Essas verdades, aparente-  votado a  interrogar-se.  É esta a  sua  questão.  E não  apenas o
       mente opostas, podem  completar-se numa  ordem superior.   seu problema, mas também o seu mistério. A razão, a graça e a
        Porém,  não se fazendo essa  síntese,  por incapacidade ou  por   fé.  serão sempre caminhos abertos às suas interrogaçõcs.
       limitação, ou por outros motivos, nega-se uma  parte e guarda-  Talvez nesta  questão, como em  muitas outras,  nunca  haja
       -se a outra. A verdade fica, assim,  mutilada.          um  olhar exacto e consensual, dada a autonomia das ciências,
         Sirva, como exemplo do pensamento deste admirável espíri-  a singularidade da  natureza  humana  com  o  seu  mundo de
       to,  tão  conhecedor da  Física  como da natureza  humana, e  tão   interrogações e decisões e as variáveis existentes nos indivídu-
       profundamente religiOSC?,  a acção litúrgica que todos estamos a   os ou grupos. Contudo, a verdade só pode ser encontrada. não
       celebrar:  a  Eucaristia.  E uma  presença  real, sacramental.  de   fabricada. Não se produz, procura-se.
       Cristo, e também a figura da cruz e da glória. Martinho Lutero   Os sofismas podem  reinar bastante tempo.  Basta,  para  isso,
       e, depois dele, os protestantes, não conciliando estas verdades   que sejam utilizados com  alguma  virtuosidade e ao sabor de
       diferentes,  isto é,  não compreendendo, ou  não querendo acei-  paixões individuais ou de interesses de grupo.
       tar, que a  Eucaristia pode ser, ao mesmo tempo, presença  real,   Em  meados do século XVII1,  passeavam  dois  famosos  e!lci-
       sacramental, e  figura  ou  memorial,  negam a  presença  e afir-  clopedistas, dialogando sobre temas sociais. Em  certo momen-
       mam a  figura.  Verificando-se,  também aqui,  a  mutilação da   to, um confidenciou ao seu companheiro que iria apresentar-se
       verdade. E daqui ao aparecimento do adversário e,  por conse-  a  um concurso, aberto por uma academia, e em que se propu-
       guinte, da polémica, é um pequeno, e sempre fácil, passo.   nha o seguinte tema: Se os progressos da civilização teriam ou
         A  Matemática  e a  Física  descobrem e  estuda m  as leis da   não sido benéficos para a humanidade. O amigo ouviu-o e per-
       natureza.  Mas quem as interiorizou na realidade, de modo tão   guntou-lhe em que sentido iria responder.
       íntimo, que são a sua explicação? Na  natureza, só há  transfor-  A resposta  foi  que o trabalho ti  aprese.nlar ao concurso seria
       maÇões,  e  o  acaso será  sempre  um  estranho  comparsa  da   um cântico em louvor da ciêncill e do progresso. O confidente,
       História.                                              que conhecia o  mundo. objectou-lhe,  porém, que,  por ser esse
         A cultura judio-cristã,  na  elaboração da  ideia de  Homem,   o pensar comum, todas as respostas o iriam reflectir. Se quises-
       parte de uma inquietude, de um inconformismo, de um senti-  se ter  mais  probabilidades de vencer,  devia dizer o contrário.
       mento de culpa e de uma aspiração à libertação plena, que não   Era  paradoxal, é certo, mas por isso seria discutido. Daria  nas
       é deste mundo, como deste mundo não é a plenitude. Sem dcs-  vistas.  Dócil ao conselho, o concorrente, com  mira  no  prémio,\.
                                                                                          REVISTA  DA ARMADA '  JANflRQ 94  1 3
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