Page 397 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
Património Cultural da Marinha
Peças para Recordar
44. O SAVEIRO “MEIA-LUA” DA CAPARICA
De entre as embarcações que se encontram expostas no exterior do Museu de Marinha há uma que se
destaca pela sua beleza e pelas suas próprias características - é o Saveiro “Meia Lua” da Caparica.
O “barco meia-lua”, que tem grandes afinidades com os barcos da região de Aveiro, foi introduzido na
Caparica cerca da metade do século XVIII. É uma embarcação mais pequena que o “barco do mar” da costa
de Aveiro e possui linhas que são muito diferentes das deste, sendo levantadas abruptamente as duas extremi-
dades, em vez de ter somente a sua proa lançada para cima e longamente projectada. O fundo chato do
“meia-lua” que é muito arqueado eleva-se para as curvas da proa e da popa criando um perfil em crescente, o
que dá o nome à embarcação.
Cada “meia-lua” era manobrado por uma “companha” ou associação de pescadores que vieram sobretudo
de Lavos e Buarcos para tomar parte numa forma particular de arrasto com rede de cerco. Alguns dos homens
que trabalhavam nesta ocupação eram também do Algarve. A “companha” era constituida por duas equipas;
uma que embarcava e manobrava a rede e os seus acessórios e uma outra, em terra, que lançava a embar-
cação, recolhia a rede para a praia e recuperava a embarcação quando esta regressava.
Os “meias-luas” eram antigamente construídos em Ovar pelo construtor Bernardino Gomes. Eram muito
mais pequenos do que o “barco do mar” que pode, ainda hoje, ser encontrado em Aveiro. Os primeiros bar-
cos eram, apesar de tudo, bastante grandes: o seu comprimento era de 10,80 metros e a sua boca 2,85 me-
tros,como está representado num modelo da Colecção Seixas no Museu de Marinha, construído à escala de
1:25, cujas linhas e plano de construção foram retirados por José Pessegueiro Gonçalves em 1920 de uma
embarcação existente denominada “SEMPRE VIM”. Estas grandes embarcações eram construídas com quatro
bancadas para os remadores e as posteriores, mais pequenas, e em menor número, que mediam 8,50 x 2,40
metros aproximadamente, eram construídas com três. A parte de ré do casco era deixada aberta para permitir
espaço no qual era alojada a rede, as suas numerosas poitas e flutuadores de cortiça e os cabos de puxar.
Nos tempos antigos, alguns “meias-luas” eram aparelhados com vela e leme do tipo “xarolo” para a pesca
no Rio Tejo, para vender o peixe nos mercados da margem norte.
A construção do casco de encolamento vivo do “meia-lua”, as suas extremidades elevadas e o estilo de
representação do olho pintado em cada lado da proa, congregados, apontam para uma origem na Ria de
Aveiro; mas a origem mais provável dos barcos daquela região reside nos barcos da Mesopotamia, con-
forme mostra uma miniatura em prata encontrada por Leonard Wooley na sua escavação de uma das tum-
bas reais em Ur e nos barcos do povo Madan que vive na área pantanosa entre os rios Tigre e Eufrates no
Iraque. A difusão a partir daí deve ter tido lugar através do Levante, pois na altura, os marinheiros de Tiro
devem ter continuado para Oeste de modo a formar uma sólida ligação com a Europa Atlântica até à ocu-
pação Assíria do Próximo Oriente.
O estilo dos olhos nas proas é diferente daqueles que eram usados pelos Egípcios, pelos Gregos e pelos
Romanos.
O “meia-lua” era transportado para a borda de água por todos os homens da “companha” que levavam aos
ombros uns paus atravessados por cima do barco com esta finalidade. Para ser lançado à rebentação, sem
virar, eram necessárias três coisas: uma vara nas mãos do homem da proa ou “vareiro” que resistia ao impulso
lateral da corrente que nele actuava; uma vara por baixo da popa, segura por alguns homens do grupo de
terra, de um lado ou do outro do barco conforme necessário; e um cabo com um gancho passado a um anel
a ré e puxado na direcção oposta. O barco era então empurrado para a onda e iniciava a progressão com as
remadas, guiado por um remo montado a estibordo a ré. A tripulação consistia no homem da proa (proeiro),
seis a oito remadores, um homem a vante para guiar a “arte de arrastar para terra” ou “xávega” assim que esta
era lançada pela borda, e o homem do leme que era o patrão e norma1mente o dono da embarcação. O apa-
relho de pesca era uma rede de arrasto, lançada em semicírculo de maneira que concentrasse o peixe, nor-
malmente sardinha, e depois trazê-lo para a praia. A rede usada mais recentemente era a “rede da tartaranha”
que consistia num saco e a sua cuada e dois longos braços puxados manualmente para cima, por cabos.
Em 1948 existiam 14 “Meias Luas” na Caparica, mas o seu número foi descendo, podendo em 1970 serem
contados pelos dedos de uma mão. Prevendo o seu rápido desaparecimento, o Museu de Marinha adquiriu
em Junho de 1975 um exemplar que se encontra exposto junto à entrada para o Planetário e onde o visitante
pode admirar as suas belas formas e toda uma arte que se vai extinguindo.
Museu de Marinha
(Texto de Dr. Manuel Leitão, Membro da Academia de Marinha)