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HISTÓRIAS DA BOTICA (25)
O Cágado e o Natal
O Cágado e o Natal
ruzei-me com o Cágado num corredor não tolerava um trabalho das 9h às 5h”, que – litares na frente de combate foram votados,
do Hospital. Ele não me viu no meio afirmava enfaticamente – o “sufocava deva- pelo poder político de então. A esse propósito
Cda atarefada mole humana, que garinho...”. Travei conhecimento com ele comentaria o Cágado:
preenche as manhãs de quarta-feira, no numa Corveta velha. Impressionou-me pela - Vê Doutor, a história repete-se. Pelo
Hospital da Marinha. Estava igual a si tranquilidade, tão pouco usual nos tempos menos agora não estamos em guerra! Dizia
próprio, calmo como sempre, com o ar de que correm... sorrindo, naquele modo pausado que o carac-
quem está ali, sem estar...indiferente aos Era extraordinariamente culto. Lia muito. teriza...
apressados transeuntes... Fora de quarto, era vê-lo a ler livros de poesia À tardinha, sentava-se na tolda para olhar o
Foi esta forma de ser, que lhe mereceu a como “Leaves of Grass” de Walt Whitman, vazio e fumar um cigarro, daqueles em que se
alcunha. O Cágado move-se lentamente, mas um poeta americano, ou a “Memória de abre o papel, se deita devagarinho o tabaco, se
de forma segura, como se não lhe interessasse Elefante” do nosso Lobo Antunes. Tudo mistu- lambe as pontas para fechar o papel...tudo
o amanhã e já tivesse esquecido o ontem... rado com um livro de bolso, comprado num ritual lento, de gestos e cheiros, à
Nada o parecia atingir. Nada o perturbava... aquando de uma permanência em Inglaterra, maneira de um ritual de louvor, a um qualquer
Filho de uma família abastada – o pai estava cujo autor inglês me escapa, sobre a partici- Deus pagão...
estabelecido na província e tinha algo de seu - pação portuguesa na 1ª guerra mundial, em Um dia – do qual me arrependo – perguntei
o Cágado tinha vindo para a Marinha, “porque que o autor criticava o abandono a que os mi- ao marinheiro Cágado porque não tinha estu-
dado mais, quiçá frequentado um curso e, se
queria seguir carreira na Marinha, porque não
tentar a Escola Naval? A resposta demorou...O
Cágado é muito assim, fica parado, como se o
tempo e o espaço não existissem, o céu não
tivesse nuvens e não houvesse morte. Final-
mente, passados embaraçosos segundos, que
me pareceram horas, pois imediatamente após
a pergunta, senti-me idiota, por fazer tão ínti-
mo inquérito, respondeu laconicamente...
-Não estudei mais, porque não seria eu...E
saiu lentamente.
Demorei muito tempo a digerir a resposta.
Pareceu-me que como tudo no Cágado, havia
uma lógica especial. O Cágado tem razão,
para saborear a vida, sentir o vento, ter tanta
tranquilidade, cada um deve achar o seu lugar
no mundo e senti-lo como seu, em equilíbrio
perfeito...Talvez o Cágado não tivesse tanta
necessidade de cultura ecléctica, tanta necessi-
dade de saborear o momento se não fosse o
que é? Com ele não haviam lamentos, desejos,
anseios, a vida era...e isso bastava....E surpresa
das surpresas, nele, essa atitude não significava
inconformismo, ou aceitação, significava pura
e simplesmente harmonia...
Achei que éramos opostos, eu e ele, porque
eu sempre questionei tudo e todos. Passo, na
verdade, muito tempo à procura da razão das
coisas e sofro de um inconformismo doloroso,
que torna a vida difícil, como se houvesse
sempre qualquer coisa por fazer no futuro e
qualquer coisa, que não deveria ter aconteci-
do, no passado...Dai a intranquilidade que
permeia os meus dias...
Nesse dia, no Hospital da Marinha, pergun-
tei ao Cágado o que fazia ali? A que vinha? A
resposta (já) não me surpreendeu...
- Vim ver os amigos! – Não sabe Doutor,
quando se quer encontrar alguém na Marinha,
que procuramos há muito tempo, passeamos
duas ou três vezes nos corredores do Hospital
e, é certo e sabido, cá o encontramos...
O que tinha feito?
30 DEZEMBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA