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HISTÓRIAS DA BOTICA (30)
O passarinheiro de emoções
O passarinheiro de emoções
or vezes, na vida, uma sucessão de Fiquei sem responder durante alguns se- toque humano aproxima mais que muitas
acontecimentos toca-nos no profundo gundos. Em primeiro lugar, não conhecia palavras…
Pdo ser e produz-se um silêncio, cheio o Sr. Almirante e depois porque, no íntimo
de perplexidades. Estas levam-nos a procu- da alma, não me considero digno de tão Puxou-me para fora do torpor das ante-
rar respostas, numa espiral frequentemente elogioso título. Mas, lá lhe respondi que paras, brancas e estéreis, incaracterísticas,
dolorosa – algo que só aqueles que se con- era apenas médico. Acrescentei, ainda, em onde me encontrava e fomos “beber qual-
frontam consigo próprios, com regularidade, tom sóbrio, que ser médico já era suficien- quer coisa quente”, na pequena ante-sala,
como eu, podem compreender totalmente. te absorvente e difícil. Não satisfeito com que precede o bar de oficiais, no Hospital
Neste caso foi um encontro com um velho o tom distante da resposta o Sr. Almirante, da Marinha. Ali falámos da vida e da morte,
Almirante. Este, há muito na reforma, pro- com um vigor que encurtava os 40 anos das coisas boas e más, de mim e dele, e de
curou-me intencionalmente no Hospital e que nos separam, dirigiu-me a mão, num tantas outras coisas, simples, de que é feito o
atingiu-me, de forma brusca e atrevida, com gesto súbito mas afável e apertou-ma com mundo. – Estas não cabem aqui, nem terão
a pergunta – é você o escritor? firmeza. Talvez ele, como eu, sinta que o muita importância, como o vento na cara,
obrigando-nos a limpar dos olhos
a humidade, que rega corações
solitários, surpresos por palavras
elogiosas, na boca de outros, a
que não estão, certamente, habi-
tuados…
De toda a forma, o Sr. Almirante
queria saber:
- Se não é escritor? O que é
afinal?
Não consegui responder-lhe
dignamente. Fosse por medo,
fosse pela simples surpresa. Fiquei
sem saber o que dizer…Despe-
dimo-nos nesta incógnita, mas a
pergunta ficou, como um espinho
incluso, que dói até sair.
Sentei-me, então, hoje e aqui.
Acariciei as teclas do computador
e escrevi. Encontrei a resposta
num lugar escondido, onde o si-
lêncio impera e a paixão domina.
– Parece-me agora tão óbvia, tão
clara, tão natural, que me surpre-
ende a anterior indecisão - Ora
se alguns coleccionam aves de
cativeiro maravilhados com o seu
cantar, ou com o seu vestir belo,
exótico, de outros lugares, ou-
tros, do mesmo modo, procuram
emoções, que os libertem, de um
quotidiano triste, qualquer que ele
seja: divisões familiares, empre-
gos desmotivantes, perseguições,
humilhações, desencantos – são
os passarinheiros de emoções. Tal
como os primeiros, também estes
se pasmam com a beleza e com o
carisma de entidades, sensações,
que engaiolam para seu prazer,
numa necessidade que justifica a
prisão e num espanto maior que a
liberdade…
O número dos passarinheiros,
reconhecerá o leitor atento, tem
30 MAIO 2003 U REVISTA DA ARMADA