Page 176 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (30)



            O passarinheiro de emoções
            O passarinheiro de emoções




             or vezes, na vida, uma sucessão de   Fiquei sem responder durante alguns se-  toque humano aproxima mais que muitas
             acontecimentos toca-nos no profundo  gundos. Em primeiro lugar, não conhecia  palavras…
         Pdo ser e produz-se um silêncio, cheio  o Sr. Almirante e depois porque, no íntimo
         de perplexidades. Estas levam-nos a procu-  da alma, não me considero digno de tão   Puxou-me para fora do torpor das ante-
         rar respostas, numa espiral frequentemente  elogioso título. Mas, lá lhe respondi que  paras, brancas e estéreis, incaracterísticas,
         dolorosa – algo que só aqueles que se con-  era apenas médico. Acrescentei, ainda, em  onde me encontrava e fomos “beber qual-
         frontam consigo próprios, com regularidade,  tom sóbrio, que ser médico já era suficien-  quer coisa quente”, na pequena ante-sala,
         como eu, podem compreender totalmente.  te absorvente e difícil. Não satisfeito com  que precede o bar de oficiais, no Hospital
         Neste caso foi um encontro com um velho  o tom distante da resposta o Sr. Almirante,  da Marinha. Ali falámos da vida e da morte,
         Almirante. Este, há muito na reforma, pro-  com um vigor que encurtava os 40 anos  das coisas boas e más, de mim e dele, e de
         curou-me intencionalmente no Hospital e  que nos separam, dirigiu-me a mão, num  tantas outras coisas, simples, de que é feito o
         atingiu-me, de forma brusca e atrevida, com  gesto súbito mas afável e apertou-ma com  mundo. – Estas não cabem aqui, nem terão
         a pergunta – é você o escritor?    firmeza. Talvez ele, como eu, sinta que o  muita importância, como o vento na cara,
                                                                                      obrigando-nos a limpar dos olhos
                                                                                      a humidade, que rega corações
                                                                                      solitários, surpresos por palavras
                                                                                      elogiosas, na boca de outros, a
                                                                                      que não estão, certamente, habi-
                                                                                      tuados…

                                                                                        De toda a forma, o Sr. Almirante
                                                                                      queria saber:
                                                                                        - Se não é escritor? O que é
                                                                                      afinal?
                                                                                        Não consegui responder-lhe
                                                                                      dignamente. Fosse por medo,
                                                                                      fosse pela simples surpresa. Fiquei
                                                                                      sem saber o que dizer…Despe-
                                                                                      dimo-nos nesta incógnita, mas a
                                                                                      pergunta ficou, como um espinho
                                                                                      incluso, que dói até sair.
                                                                                        Sentei-me, então, hoje e aqui.
                                                                                      Acariciei as teclas do computador
                                                                                      e escrevi. Encontrei a resposta
                                                                                      num lugar escondido, onde o si-
                                                                                      lêncio impera e a paixão domina.
                                                                                      – Parece-me agora tão óbvia, tão
                                                                                      clara, tão natural, que me surpre-
                                                                                      ende a anterior indecisão - Ora
                                                                                      se alguns coleccionam aves de
                                                                                      cativeiro maravilhados com o seu
                                                                                      cantar, ou com o seu vestir belo,
                                                                                      exótico, de outros lugares, ou-
                                                                                      tros, do mesmo modo, procuram
                                                                                      emoções, que os libertem, de um
                                                                                      quotidiano triste, qualquer que ele
                                                                                      seja: divisões familiares, empre-
                                                                                      gos desmotivantes, perseguições,
                                                                                      humilhações, desencantos – são
                                                                                      os passarinheiros de emoções. Tal
                                                                                      como os primeiros, também estes
                                                                                      se pasmam com a beleza e com o
                                                                                      carisma de entidades, sensações,
                                                                                      que engaiolam para seu prazer,
                                                                                      numa necessidade que justifica a
                                                                                      prisão e num espanto maior que a
                                                                                      liberdade…

                                                                                        O número dos passarinheiros,
                                                                                      reconhecerá o leitor atento, tem

         30  MAIO 2003 U REVISTA DA ARMADA
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