Page 382 - Revista da Armada
P. 382

Filipe II chegou a pensar trocá-la por Lara-  nhecidas as suas tentativas de constituir uma  baixo desta égide de guerra contra os cristãos
         che, que se tornara um ninho de piratas a  aliança de amizade e comércio com a Fran-  invasores. Mas o problema da persistência do
         assolar o comércio colonial. Esta hesitação  ça de Luís XIV, goradas devido à arrogância  conflito era mais grave para os portugueses
         deixou de existir depois da primeira década  deste último, aproveitadas pelos holandeses  do que para os marroquinos, porque eram os
         do século XVII, mas a discussão                                               portugueses que precisavam da
         deve ter-se reimplantado no sécu-                                             paz no mar, vendo-se obrigados a
         lo XVIII, quando Portugal sentiu                                              um esforço muito grande para ga-
         que a sua independência se joga-                                              rantir a segurança da navegação.
         va no sucesso do comércio ultra-                                              Esta é uma ideia cada vez mais
         marino, obrigando a uma política                                              clara para o governo português, e
         virada para o controlo das rotas                                              o passo decisivo seria dado no rei-
         atlânticas, afrontadas pelos pira-                                            nado de D. José, sob os hospícios
         tas magrebinos. Simplesmente,                                                 do Marquês de Pombal. Em Março
         há um momento em que Maza-                                                    de 1769, Mazagão está a sofrer um
         gão pode servir para vigiar e tra-                                            cerco tão violento quanto o de 1562,
         var o corso vindo de Salé (Rabat)                                             com a agravante de que a guarni-
         e isso pesou a favor da manuten-                                              ção da cidade está muito reduzida
         ção da cidade.                                                                e é difícil obter as forças necessá-
           O Portugal que emerge da Res-                                               rias ao seu reforço. Há uma esqua-
         tauração (1640) e da guerra com                                               dra que chega de Lisboa, mas, em
         Espanha, que se prolongou até                                                 vez do socorro que tinha sido pe-
         1668, é um Portugal debilitado, à                                             dido, trazia uma ordem para fazer
         procura de uma recuperação eco-                                               a paz e retirar definitivamente. A
         nómica que depende do comércio                                                8 de Março foi feito o acordo com
         colonial. Os produtos brasileiros,                                            os sitiantes e a 11 toda a gente es-
         que chegam a Lisboa para con-                                                 tava embarcada. Diz -nos a História
         sumo interno ou reexportação (o                                               de Mazagão (Augusto Ferreira do
         ouro só virá em 1690, mas o açú-                                              Amaral) que “antes de partirem,
         car, o tabaco e o pau-brasil têm já                                           destruíram as pedras sacras das
         grande importância), vêm pelo                                                 igrejas, encravaram as peças de ar-
         Atlântico, onde os navios são                                                 tilharia mataram os cavalos e mais
         assolados (essencialmente) pelo                                               gado e minaram todos os baluar-
         corso marroquino, tunisino e ar-                                              tes. Apenas trouxeram as imagens
         gelino. Na nossa política externa                                             e os livros da vedoria e dos assen-
         é muita clara a obsessão de pro-                                              tamentos. Soube-se depois que o
         teger estas rotas atlânticas, mas                                             rebentamento da pólvora dos ba-
         sempre sem que o peso do Norte   O fosso de protecção.                        luartes veio a provocar a morte de
         de África seja tido em conta, tal-                                            milhares de mouros, que festiva-
         vez porque no próprio Norte de África não  e, sobretudo, pelos ingleses que, paulatina-  mente entravam na praça”.
         existisse um poder sólido e único que pu-  mente, ganharam um lugar de destaque no   Apesar de tudo isto, em 18 de Julho D. José
         desse controlar essa pirataria (Salé, Tunes e  comércio com o Norte de África. Com Por-  propõe ao sultão Sidi Mohammed uma tré-
         Argel, em 1634, armavam cerca de 120 na-  tugal não havia acordo possível porque a sua  gua cujo objectivo era a negociação de um
         vios redondos para o corso e funcionavam  presença em Mazagão constituía motivo para  futuro tratado de amizade, que foi aceite
         como repúblicas indepen-                                                           por carta remetida a Por-
         dentes de qualquer poder,                                                          tugal em 5 de Setembro
         fosse ele marroquino ou                                                            do mesmo ano. Nessa
         turco). É claro, todavia, que                                                      mesma carta se confirma
         o país continua a necessitar                                                       a trégua e se diz que foi
         do trigo e doutros produ-                                                          dada ordem aos corsá-
         tos marroquinos, que são                                                           rios marroquinos “para
         comprados pelos ingleses                                                           que respeitem o pavilhão
         e holandeses, e revendidos                                                         português, olhando-o
         aos portugueses no porto                                                           como amigo”. Digamos
         de Cádis. Há aqui um ab-                                                           que o problema do corso
         surdo que não tem solu-                                                            de Marrocos estava resol-
         ção enquanto se mantiver                                                           vido, com enormes bene-
         a presença portuguesa em                                                           fícios para Portugal.
         Mazagão. E deve notar -se                                                            Naquele local cresceu
         que na altura esta era a                                                           a cidade que foi chama-
         única praça portuguesa                                                             da no século XIX de Al
         em Marrocos, na medida                                                             Jadida (a nova), e a velha
         em que Ceuta tinha ficado   A Cisterna Portuguesa.                                  fortaleza de Mazagão ali
         fiel ao rei de Espanha em                                                           ficou como testemunho
         1640, e Tânger fora dada aos ingleses como  uma exaltação à guerra santa. Num assunto  de uma permanência que durara 255 anos
         dote de casamento de D. Catarina com Car-  destes, nenhum sultão arriscaria fosse o que  e que agora foi declarada Património da
         los II em 1661.                    fosse, sob pena de ver, imediatamente, o seu  Humanidade.
           Entre 1672 e 1727 Marrocos viveu um pe-  poder contestado e alvo de agitações públicas              Z
         ríodo de estabilidade política corresponden-  de toda a ordem. Aliás, muitas das alterações   J. Semedo de Matos
         te ao reinado do sultão Mulei Ismail. São co-  políticas marroquinas já tinham ocorrido de-       CFR FZ

         20  DEZEMBRO 2004 U REVISTA DA ARMADA
   377   378   379   380   381   382   383   384   385   386   387