Page 79 - Revista da Armada
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ideal para o treino e desenvolvimento de competências da   REFLECTINDO…                     VIII
         natureza em análise. Estamos em presença de uma situa-
         ção desafiante, plena de realismo, isolada de outras inter-
         ferências, onde o trabalho em equipa é vital. A presença e       SOBERANIA
         acompanhamento por formadores conhecedores e desper-
         tos para o desenvolvimento de competências de liderança,   actual evolução do sistema internacional vem impondo a re-
         são fundamentais para a qualidade do ensino na medida   visão de alguns dos conceitos que desde há séculos regiam
         em que facilitam a aprendizagem e confirmam os compor- A  as relações entre os Estados.
         tamentos adequados e inadequados.                   Um dos conceitos que está a sofrer forte erosão é o de “sobe-
           Os cadetes ao serem estimulados a liderar, assumindo o  rania”.
         comando que lhes permite conduzir, de forma autónoma,   Atribui-se ao escritor e político florentino Nicolau Maquiavel
         pequenos grupos na execução de tarefas a bordo dos ve-  (1469-1527) o uso da palavra Estado no sentido moderno. Cerca de
         leiros, vivem as condições ideais de treino e de desenvol-  quatro décadas depois, o economista e filosofo francês Jean Bodin
         vimento de competências de liderança. É, de igual modo,   (1530-1596) estabeleceu a doutrina da soberania do Estado, inde-
         muito importante, neste contexto, o embarque nas Lanchas   pendente de influências internas e externas. Considerou que “sobe-
         de Fiscalização Rápidas e na lancha “Condor”, no âmbito   rania é o poder que não tem igual na ordem interna, nem superior
         das missões do Comando Naval e da Escola de Tecnolo-  na ordem externa”.
         gias Navais.                                        Estes conceitos fundamentaram a ordem internacional nascida da
           No seu desempenho, o líder, tem como função identifi-  Tratado de Vestefália assinado em 24 de Outubro de 1648, que pôs
         car objectivos, construir soluções, linhas de acção viáveis, e   fim à Guerra dos Trinta Anos.
                                                             Na verdade, entre outras cláusulas, foram reconhecidos os princí-
         dirigir os outros nessas linhas de acção num meio em mu-  pios da soberania territorial na formação dos Estados, da indepen-
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         dança . O “comando” (Skippering) dos veleiros da Escola   dência dos Estados, do respeito pela sua jurisdição e da legitimida-
         Naval constitui um contexto onde se reúnem os requisitos   de de todas as formas de governo.
         para a acção e validação dos futuros líderes.       Assim, no século XVII a Europa criou uma ordem internacional da
           No mar, os cadetes desenvolvem um estilo de liderança   qual resultou o desmembramento do vasto império supranacional
         funcional orientada para o indivíduo, o grupo e a tarefa,   dos Habsburgos (Sacro Império), pelo reconhecimento da soberania
         onde aprendem e desenvolvem as boas práticas de governo  de todos os Estados que o constituiam.  A mesma Europa volta hoje
         e manobra de embarcações e navios. Apreendem as tradi-  criar uma outra ordem internacional, formando uma União no mais
         ções e costumes que lhes reforçam a identidade e a especi-  vasto espaço europeu, onde é desvalorizada a soberania do Esta-
         ficidade típicas do marinheiro, aprendem e ganham cora-  do-nação pela alienação de alguns dos seus atributos a favor de um
         gem para enfrentar as dificuldades em que o mar é sempre  poder supranacional.  Mais ainda, a UE pretende que os Estados se
         pródigo, fortalecendo o espírito de corpo, a camaradagem,  submetam aos princípios do direito internacional que têm ajudado
         a resistência física e psicológica para além da capacidade  a gerar, isto é, que esqueçam a definição de Bodin e aceitem um po-
         de avaliação e assunção de riscos que conduzem à cora-  der “superior na ordem externa”.
         gem moral e física.                                 Porém, os EUA, ao contrário da Europa, desejam manter os prin-
           Os embarques mais longos e os contactos em portos es-  cípios da ordem vestefaliana. Não querem “ceder uma sílaba da sua
         trangeiros preparam os cadetes para as futuras missões fora   soberania” (Jesse Helms, National Interest, Winter 2000/01, p.31), e
         do contexto nacional, ambientando os familiares e os pró-  “não reconhecem nenhuma fonte de legitimidade democrática supe-
         prios cadetes para o afastamento, numa aceitação natural   rior ao Estado-nação democrático e constitucional (Francis Fukuya-
         das exigências e rigores do serviço para que são voluntários.   ma, A Construção de Estados, Janeiro de 2006, p. 117).
         O mar e os embarques nos veleiros tornam os cadetes mais   Mas não é tudo. Noutras áreas do globo, está a verificar-se uma
         cooperativos e construtivos, mais responsáveis e interde-  completa erosão da soberania por má governação dos Estados falha-
                                                           dos ou Estados irresponsáveis (failed states ou rogue states).
         pendentes, facilitando o desenvolvimento da sua capacida-   i«œˆÃÊ`iÊÓää£Ê>Vi˜Ì՜ՇÃiÊ>ʈ`iˆ>Ê`iʵÕiÊiÃÃiÃÊ ÃÌ>`œÃÊv>…>-
         de de adaptação e forma como lidam com o “stress”.  dos, incapazes de manter a ordem interna e de merecer o respeito
           Estes embarques constituem uma oportunidade única e   na ordem externa,  são os santuários escolhidos pelas organizações,
         insubstituível para melhorar o auto-conhecimento dos fu-  grupos ou indivíduos responsáveis  pela grande maioria das amea-
         turos oficiais da Marinha, e são uma prática regular com   ças que hoje preocupam a comunidade internacional: terrorismo,
         idênticos objectivos em Marinhas aliadas.         tráfego de armas e de droga, perseguições de minorias e conflitos
           Todas estas actividades constituem objectivo da forma-  étnicos, etc..  Estados fracos são terrenos férteis para a irradiação do
         ção militar -naval e marinheira ministrada pela Escola Naval  crime internacional organizado.
         que se materializa no desenvolvimento de uma cultura na-  Temos assim que o conceito de soberania é mantido com o enten-
         val onde se aglutinam os interesses, os sonhos e o imaginá-  dimento original pelos EUA, está a ser voluntária e gradualmente
         rio nacional que o “espírito marinheiro” alimenta e sustenta  desvalorizado pela UE e perde sentido face à má governação dos
         e pelo qual só a Escola Naval pode responder.      ÃÌ>`œÃÊv>…>`œÃ°Ê >µÕˆÊÀiÃՏÌ>“Ê`Õ>ÃÊVœ˜ÃiµÕk˜Vˆ>ð
           É, por isso, motivo de regozijo poder contar de novo   No primeiro caso, a dificuldade no relacionamento entre a UE e
         com o NRP “Polar”, após longo período de reconstrução  os EUA.
         e reequipamento, para o cumprimento da missão relativa   No segundo caso, a alteração do princípio da “não ingerência”
         a esta importante parte da formação dos cadetes, de que   pela comunidade internacional e principalmente pelos EUA. No iní-
         serão os primeiros beneficiários, para bem da Marinha e   cio dos anos 90 começou a ser aceite o recurso à intervenção militar
         de Portugal.                                      por razões humanitárias, depois foi incluída a justificação da defe-
                                                           sa dos direitos humanos e, após o 11 de Setembro de 2001, também
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                                (Colaboração do Comando da Escola Naval)  a salvaguarda da segurança internacional.
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         Referências:                                      xões.
           1  (Van Velsor & McCauley, 2004)                                                                    Z
           2  (Lord & Maher, 1990)                                                            António Emílio Sacchetti
           3  (Mumford & Connely, 1991)                                                                     VALM
                                                                                        REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2006  5
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