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VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA 14
“CELEBRAR O MAR”
mar é um elemento decisivo da construção de Portugal e fez nascer Portugal como pátria de um povo marítimo. No entanto,
da afirmação consciente do ser português. Foi do mar que na actualidade precisa de ser fortalecido, para que, usando o mar,
O brotou a alma colectiva que edificou a nossa Pátria, com possamos valorizar o que fomos, o que somos e o que queremos
a convicção íntima de si própria, e o seu carácter vincadamente ser, e que possamos pensar o mar como elemento fulcral da nossa
diferenciado. É o mar que nos permitirá manter um conceito de vida colectiva, em função do qual poderemos conceber e pôr em
vida português, distinto, por exemplo, de outros povos amigos prática os novos grandes projectos nacionais. Estes, serão assumi-
com quem partilhamos o projecto político de formação de uma dos por uma faculdade ou potência interior, em virtude da qual
nova Europa. cada português manifestará
Todavia, vivemos num um desejo, uma intenção,
estado de insensibilidade uma pretensão, uma tendên-
colectiva relativamente ao cia, uma disposição de espí-
mar! Por isso, é tão débil a rito, ou uma propensão mais
noção de que o mar confere ou menos irresistível para a
ao país uma capacidade de realização de actos de géne-
afirmação internacional mui- se marítima. Isto é, cada um
to maior do que aquela que de nós determinar-se-á fazer
decorre da dimensão física o que lhe compete na óptica
do seu território. Por isso, são do interesse nacional, tendo
tão desvalorizadas as amea- o mar como referência. Será
ças à segurança nacional que, esta força intangível, vulgar-
através do mar, encontram mente designada por vontade
um mais fácil acesso. Por marítima nacional e composta
isso, se tira tão pouco partido por fundamentos espiritu-
da função do mar enquanto ais, intelectuais e materiais,
via de comunicação global de que permitirá a mobilização
pessoas e bens. Por isso, se dos portugueses na pros-
continua a poluir o mar, em secução daqueles projectos
níveis tão elevados, a exer- colectivos, garantindo os
cer uma tremenda pressão desempenhos estratégicos
urbanística sobre os espaços que elevarão e robustecerão
litorais, e a sobreexplorar os Portugal.
recursos marinhos. É a nossa A Marinha, ao celebrar
actual indiferença mental re- anualmente o mar a 20 de
lativamente ao mar, que nos Maio, evoca a data históri-
impede de percepcionar con- ca da chegada de Vasco da
venientemente a sua impor- Gama a Calecute, e procu-
tância para elevar e robuste- ra fortalecer a mentalidade
cer Portugal. Este problema é marítima dos portugueses e
grave, e a sua solução passa, animar os fundamentos es-
em primeira instância, por pirituais, intelectuais e ma-
um enriquecimento da cultu- teriais da vontade marítima
ra marítima dos portugueses, nacional. Para isso, as nossas
porque só ela permitirá desenvolver os níveis de consciência neces- cerimónias estimulam os sentimentos, as ideias e as tradições do
sários para se entender o real valor do mar para o nosso país. povo relativamente ao mar, partilhando o acervo tão diversifica-
A cultura marítima, em sentido filosófico, designa a vida inte- do do Museu de Marinha, do Aquário Vasco da Gama e do Pla-
lectual ou o pensamento crítico e reflexivo dos portugueses sobre netário Calouste Gulbenkian. As iniciativas da Comissão Cultural
o mar. Por um lado, compreende o estudo das ciências e das artes da Marinha, da Academia de Marinha, da Biblioteca Central da
ligadas ao mar e, por outro lado, aplica-se à designação de um es- Marinha, da Escola Naval, do Instituto Hidrográfico, da Revista
tado de perfeição intelectual e moral sobre os assuntos do mar, nor- da Armada e da Banda da Armada, divulgam as artes e ciências
malmente atingido apenas por algumas elites nacionais. Em senti- ligadas ao mar e contribuem para o aperfeiçoamento intelectual e
do sociológico, a cultura marítima traduz o conjunto de estilos, de moral dos portugueses sobre os assuntos do mar. A presença dos
métodos e de valores materiais que, juntamente com os bens morais navios, dos fuzileiros e dos mergulhadores, bem como dos vários
relacionados com o mar, foram adoptados pelos portugueses. Neste organismos da Direcção-Geral da Autoridade Marítima e da Polí-
contexto, abrange quer um acervo de apetrechos e de instrumentos cia Marítima, têm como propósito fundamental evocar a presença
marítimos, quer um conjunto de hábitos corporais ou mentais marí- de Portugal no mar.
timos, que servem directamente para a satisfação das necessidades Ao CELEBRAR O MAR, a Marinha festeja um passado que im-
de desenvolvimento e segurança dos portugueses. porta preservar e projectar no futuro que se quer construir, abrindo
A contradição aparente entre a natureza psicológica do homem novas oportunidades à Nação. Porém, mais do que um momento
e o facto de que a cultura marítima, em sentido sociológico, trans- de exaltação corporativa, é sempre uma manifestação inequívoca
cende o indivíduo, deu origem, entre nós, ao conceito metafísico de da perfeita e secular simbiose do País com a sua Marinha.
mentalidade marítima. Foi este conceito filosófico e artístico, que Z
4 JUNHO 2007 U REVISTA DA ARMADA