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A MARINHA DE D. JOÃO III (34)
Um governo ao estilo de Maquiavel
Um governo ao estilo de Maquiavel
iz Gaspar Correia, nas Lendas da Ín- sistematicamente a honestidade dos outros Hindustânica, um pouco a leste do Cabo Co-
dia, que Martim Afonso de Sousa, tinha o efeito perverso de lançar o opróbrio morim, e acabou por não ter o sucesso que
Destando em Moçambique, recebeu sobre todos os responsáveis e seus criados. E ele desejaria. Deve dizer-se, neste sentido,
uma carta de um tal Jerónimo de Figueire- isso, não só não era justo, como corroía todo que o governador foi um hábil negociador
do, dizendo-lhe que “acudisse à Índia, que o sistema governativo do Estado da Índia. É com as potências locais, evitando sempre os
totalmente estava perdida de males que ti- muito difícil saber hoje da honestidade (ou grandes conflitos e o desgaste das esquadras
nha feito dom Estêvão, e grandes roubos” e falta dela) de Estêvão da Gama, mas é óbvio e meios portugueses.
que temendo pela sua chegada, tendo junto o carácter maquiavélico (no sentido estrito Martim Afonso de Sousa foi vítima da sua
muito dinheiro, o distribuíra por amigos, pa- do termo) que preside à forma como Martim própria maneira de ser e da desconfiança
rentes e criados, para que não fosse encontra- Afonso de Sousa toma conta do governo da permanente que tinha de tudo e todos. Não
do. Acrescentava ainda que “se queria achar Índia, humilhando o seu antecessor e come- creio que tenha trazido ou deixado amigos
este dinheiro, que o mandasse to- na Índia, controlando os seus súb-
mar de súbito, antes que se sou- ditos e garantindo lealdades ape-
besse de sua vinda”. Foi esta a ra- nas da forma como o fizera com
zão aparente e imediata por que Diogo Soares: tinha os seus mais
Afonso de Sousa resolveu tomar directos servidores na mão, mais
conta do galeão que fora enviado pelo que deles sabia e jogando
da Índia, resolvendo usá-lo para com as suas próprias venalidades,
fazer a travessia de imediato e do que por uma verdadeira rela-
durante a monção pequena, entre ção de fidelidade com eles.
Abril e Maio. O autor das Lendas Anteriormente foi referido (Ma-
acrescenta ainda que, ao passar rinha de D. João III (26), (27) e (28))
por Melinde, o novo governador que se deve a este governador o
cruzou-se com um tal Diogo Soa- reatamento regular das relações
res, fidalgo que viera degredado comerciais com a China. Estou
para a Índia e que fora condena- em crer que a sua enorme expe-
do por Estêvão da Gama por es- riência do Oriente lhe permitiu
tar implicado na morte de um compreender que o intenso tráfi-
seu criado. Este Diogo Soares que co ilegal, que pululava nos mares
conseguiu escapar à justiça fu- da China, em nada beneficiava a
gindo com uma fusta, com a qual capitania de Malaca, o governo da
andava a monte, dedicando-se à Índia e, em última análise a coroa
pirataria na costa africana, apre- de Portugal. Esse comércio era di-
sentava-se agora a Martim Afonso tado pelas circunstâncias do mo-
propondo -se servi-lo em troca do mento, mas se fosse reprimido ou
perdão e seguro. O governador sobrecarregado de impostos pe-
aceitou a oferta, e mandou-lhe de los poderes portugueses, muito
imediato que o acompanhasse até mais se afastaria da sua alçada. A
Goa. Encarregou-o de seguir à sua protecção portuguesa (relativa),
frente, aproximando-se da barra poderia exigir um preço, mas era
de Goa, sem que o galeão se visse preciso que ele fosse razoável. E
de terra, e que, depois, sinalizasse Porta de Santiago da fortaleza portuguesa de Malaca. o governador entendeu-o muito
o caminho com um farol na popa, para que o çando a criar a sua própria clientela privada, bem, reformando o sistema da alfândega
navio de Afonso de Sousa pudesse entrar de a partir de situações como o perdão a um ho- de Malaca, com um novo regimento, e con-
noite, sem ser detectado pelas vigias da ci- miziado como era Diogo Soares. Deve dizer- cedendo cartas de privilégio a pessoas que
dade. Pretendia assim surpreender todos os -se, aliás, que a acção governativa de Martim armaram navios para ir comerciar à China.
servidores de Estêvão da Gama e, sobretudo, Afonso se caracterizou por uma dissimula- Digamos que Afonso de Sousa compreendeu
impedir que a escrituração financeira fosse ção permanente, fosse nas acções que levava a importância da iniciativa privada nesse
mexida, truncada ou destruída antes dele a a cabo com os próprios portugueses e com mundo oriental onde nada era claro, e onde
poder ver e analisar com atenção. os capitães das fortalezas, fosse com os dife- os limites entre o legal do ilegal podiam ser
O procedimento de Afonso de Sousa só rentes reinos e potentados, a quem prometia tão ténues como as linhas que separavam a
pode compreender-se no contexto da época, paz, apoio, protecção, amizade, etc., prote- riqueza da escravatura ou a vida da morte.
e na forma como era habitual comportarem- lando sistematicamente todas as medidas Mas, como tudo o que tinha a ver com o seu
-se, no Oriente, alguns fidalgos portugueses. que acordara. É célebre a forma como colo- governo e as suas decisões, acabaria por ser
E, sobretudo, alguns dos governadores que cou no mar, ao largo de Goa, uma esquadra acusado de fazer essas concessões em função
antecederam Estêvão da Gama. Mas ele ti- de 45 velas, com mais de 3000 portugueses e de compadrios e cumplicidades. Acusações
nha obrigação de perceber que a calúnia era cerca de trezentos cavalos, sem que alguém que, apesar da sua vigilância, chegariam a
uma arma mortífera, tão usual como a pró- soubesse qual era o objectivo da expedição, Lisboa através de numerosa correspondên-
pria corrupção, e que um dia se poderia vi- e repetindo que se destinava a combater os cia enviada pelos despeitados.
rar contra ele próprio, se a alimentasse como rumes, apesar de toda a gente saber que não Z
estava a fazer naquela altura. A honestidade havia rumes nos mares do Índico. Destina- J. Semedo de Matos
era um bem insubstituível, mas questionar va-se a atacar um reino no sul da Península CFR FZ
18 MAIO 2008 U REVISTA DA ARMADA