Page 30 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (75)
O José e o milagre…
Fazer medicina é ocasionalmente um Saúde cheia de recursos. É aqui que entra o passou a ser mais fácil – o que lhe aliviou o
acto solitário e, por vezes, emocional José, Marinheiro antigo, reformado após um sofrimento das cirurgias subsequentes…
mente pesado. A principal missão da acidente de viação, que muito lhe limitou a
Medicina e por extensão dos seus “práticos” mobilidade e impediu o serviço activo. En Enquanto contava a história o José – que
(termo que a língua francesa imortalizou e contreio por acaso, numa estação de serviço eu tinha conhecido a bordo de uma das cor
que se refere aos que praticam medicina) é o nos subúrbios desta grande metrópole, que vetas, em comissão nos Açores – evidenciava
“alivio do sofrimento”, com toda a abrangên em certos dias, por razões que nunca abar a alegria antiga, que há muito tempo não lhe
cia que esse conceito abarca…Infelizmente, carei, me parece pequena. Quase não o reconhecia. Despedimonos e sai, eu pró
e apesar de avanços gigantescos nos últimos reconheci. Havia perdido peso e, aparte de prio, cheio de harmonia na alma. Atingiume
anos, existem ainda muitas limitações à ca um pequeno movimento de rotação do pé, um sentimento de beleza. A beleza que ad
pacidade de tratamento da medicina actual. estava irreconhecível pois tinha uma marcha vém do facto inequívoco de que a Medicina,
Estes são os muitos casos em que a utilidade ágil, quase normal. Parecia feliz… no caso do José, ter vencido um desafio im
da arte médica parece curta e insuficiente. portante. Senti, também, uma grande alegria
Esta última circunstância, compreensivel Quis saber como tinha largado as muletas? por saber que houve um médico anónimo
mente, deixa muitos pacientes em sofrimento Como havia recuperado? Lá foi contando, capaz de investir na saúde de um homem
e muitos médicos com enquanto os carros passavam apressados e humilde até aos limites das suas capacidades
uma sensação profun chovia copiosamente. Conheceu um mé
da de vazio… dico cirurgião especializado em reconstru e esforço. O espírito da
ção de feixes nervosos periféricos (os ner Medicina, apesar dos
Compreensivelmen vos periféricos são aqueles que dão vida aos tempos que correm,
te, os médicos guar músculos das pernas e dos braços, sem os muito pouco dados ao
dam o desejo íntimo quais se instala a irremediável atrofia e con idealismo, pareceu
de crescer na sua capa sequente limitação da mobilidade). A histó me – naquele dia par
cidade de tratamento e ria era impressionante, fez cinco cirurgias, ticular – bem vivo, de
sempre que se atinge sequenciais, para lhe restaurar os nervos acordo com os princí
um limiar técnico de de uma perna – antes considerada irreme pios directos herdados
incapacidade, porfia diavelmente lesada. Ao princípio todos lhe de Hipócrates…
se por melhorar, até diziam que era um mau caso, mas o José,
ao limite do engenho Marinheiro resiliente, acreditou sempre que O nosso José sen
humano. Por esta ra havia margem para melhorar e o seu médico tiu um milagre na sua
zão largos milhões são – deduzi imediatamente em silêncio – tam vida. Sofria e foi ali
gastos em investigação bém terá acreditado… viado, não andava e
médica, no Mundo, to agora marchava ágil,
dos os anos... Contudo, Houve períodos difíceis. Após as duas pri estava triste e agora
uma ressalva é aqui im meiras intervenções nada de bom parecia ter sorri. Lembreime en
portante, não é só aos acontecido, só o sofrimento e o incómodo, tão dos muitos doentes
médicos que cabe a que normalmente acompanham as interven que eu próprio já ten
honra da invenção para ções cirúrgicas. O médico terá então enco tei ajudar e os muitos
o bem alheio, também conheci enfermeiros rajado o nosso José. Ainda era cedo para de doentes que todos os
e outros técnicos de saúde que se excederam sistir, valia a pena continuar – terá afirmado. dias médicos anóni
e desdobraram no tratamento e no acompa O José Marinheiro acreditou. Após a terceira mos tentam salvar. Raramente se fala desses
nhamento de doentes, particularmente em cirurgia houve alguma melhoria – acreditar casos, mas são, também eles, milagres que
casos em que as suas mãos e carinho fazem salvam vidas…
toda a diferença… Suspendi esta história, durante uns dias.
Não sabia (melhor dito, não sentia) como a
A esta altura, naturalmente, o raro leitor devia terminar. Hoje, entre duas aulas (pois
regular destas histórias está a pensar que a voltei à escola) ocorreume numa súbita cla
Medicina ficará sempre aquém das necessi rividência: impressionoume a história do
dades totais da saúde humana. Claramente José pois mitiga o vazio que eu próprio carre
esta premissa é verdadeira. O desenvolvi go pelos muitos que conheço a quem a Me
mento da medicina andará sempre um pas dicina não conseguiu ajudar e por aqueles
so atrás dos limites da biologia humana, mas que me estão próximos e que – com toda a
também é verdade que esse limite tem sido ciência do mundo – não consigo aliviar …
progressivamente esticado. Ainda hoje, em Ver o José foi como sentir uma brisa fresca.
países mais desfavorecidos, a expectativa A certeza que os milagres podem existir. A
de vida situase em idades jovens (cerca de certeza que caminhamos na direcção certa
40 anos de vida expectável), essa expectati e que, de facto, vale a pena ter sempre espe
va atinge mais ou menos o dobro no mun rança…Enchi finalmente o depósito. Senti na
do desenvolvido. – Este desiderato devese mão o gasóleo pegajoso, não tinha introduzi
a melhores condições de vida e a um me do bem a mangueira... Limpeime e rapida
lhor acesso a uma Saúde tecnicamente de mente segui. Não me importei com a chuva.
senvolvida… Afinal tinha presenciado um milagre…tudo
estava perfeito, tudo fazia sentido…
Os pacientes, no nosso mundo, esperam e
acreditam que vão ter uma vida longa e uma
30 JUNHO 2010 • Revista da aRmada Doc