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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (23)
Também há gaivotas no Lumiar…
Ele há homens para tudo, até para andar construção… Contudo, e com o devido respei- nunca se pediu que cumprissem os modelos
no mar… to por todas as instituições dedicadas ao saber, civis, ou a antagonizar civis, que procuraram
integrar uma instituição de saúde é bem mais cumprir os graus técnicos pedidos pelas carrei-
(frase comum entre marinheiros; parece ter difícil que integrar uma instituição de ensino. ras a que pertencem…
Na realidade, a saúde é um bem dos mais pre-
Tsido atribuída ao Marquês de Pombal…) ciosos (…se não o mais precioso, para qualquer Quis o destino mais uma vez – que poucas
alvez fosse do tempo chuvoso, que tarda ser humano). Atos básicos, como exames, cirur- vezes é claro para aqueles que dirige e nunca
em deixar chegar a Primavera… ou do gias, entre outros, não são adiáveis, ou sujeitos a me facilitou a vida – que eu me encontrasse no
vento inclemente daquela manhã de tem- reorganização nos mesmos moldes que salas de meio desta mudança organizacional profunda,
pestade, o mundo parecia cinzento, sem graça e aula, conteúdos e professores… temperada por grande austeridade… Em que
até sem esperança. Foi então que ouvi um grito tudo, tudo mesmo, parece estar a ser reequacio-
familiar: havia gaivotas sobre o Pólo Hospitalar No que diz respeito ao pessoal médico (mé- nado. Ora, quando estou perdido, volto sempre
do Lumiar… talvez empurradas pela borrasca, dicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde), lá ao sítio onde tudo começou. Volto às noções
ou em simples voo solitário de descoberta… também as exigências de certificação são das mais simples, aos doentes, à medicina – o tema
mais exigentes de todos os profissionais (em que sempre me apaixonou. Lembro que, em
Fizeram-me, logo ali e então, lembrar os em- qualquer área). Essa exigência materializa-se tempos idos, também eu fui mal compreendido
barques. Os embarques marcam as pessoas, num extenso tempo de formação para atingir (por alguns dos meus próprios pares, médicos
quase lhes fazem crescer guelras e barbatanas… determinados graus e, posteriormente, numa militares) por ter cumprido os graus da carreira
torna-as diferentes, fá-las crescer. Quem sofre de prática continuada em centro diferenciado (que civil e académica, que no atual contexto pare-
enjoo de movimento, a base do enjoo marítimo, nem sempre os próprios técnicos militares, ou os
sabe que pode ser causa de muito diferentes ramos militares, valorizaram do mes- cem absolutamente adequados…
sofrimento. Isto acontece porque, mo modo…). Lembro especialmente as muitas
ao contrário do que pode acontecer
num carro de combate, ou mesmo Em face disto, existem entre os ramos diver- outras tempestades em que já me
num avião, o enjoo naval pode du- gências gritantes quanto à formação dos seus perdi e onde, apesar de outros ven-
rar dias e, por vezes, longas semanas quadros de saúde. A Marinha, pela natureza tos, nortadas furiosas, acabei sempre
– já que, compreensivelmente, pela particular das suas funções, que preveem o em- por me encontrar. Nestas ocasiões
natureza própria dos meios, as mis- barque para todas as classes, sempre apostou na sigo a razão que a minha alma sem-
sões navais são longas… Por outro formação de militares do “Ativo” para o quadro pre traçou: ouvir as vozes de dentro
lado, em meio naval, o comandante hospitalar. Podia assim utilizá-los em missões e procurar a linha de um horizonte
do navio está na linha da frente. Isto operacionais, particularmente nos embarques por detrás do nevoeiro, que escon-
é, todos a bordo (…sim, mesmo o – uma necessidade imperiosa, ainda hoje (...o de o futuro… Recomendo, neste
médico) estão sujeitos ao mesmo “duplo uso” com que sempre conviveram os mesmo sentido, aos doentes da Ma-
enjoo, em que por vezes se parece médicos e enfermeiros de Marinha, da minha rinha, aqueles que melhor conheço
perder o estômago e até a alma, na geração). Ao contrário, as outras instituições, e que amiúde me procuram a título
paz e aos mesmos riscos na guerra… com culturas, exigências e orçamentos distin- pessoal, que, na medida do possível,
Esta, a meu ver, é a essência da Mari- tos, sempre se apoiaram (em grande medida) esperem pela acalmia, que se segui-
nha, que esculpiu, ao longo de sécu- em técnicos de saúde civis, que, é claro, têm rá à tempestade. Sei que muitos estão
los, uma cultura em que se valorizou um enquadramento técnico e orgânico muito agora perdidos…
a proximidade e a confiança mútuas… diferente (geralmente baseado nas carreiras ci-
vis equivalentes). A “homogeneização” deste Pela minha parte – e é conselho
No HFAR (a sigla para Hospital das Forças quadro, como compreende a esta altura o meu que estendo a todos os marinheiros na “nova”
Armadas) atual para além de todas as dificul- esforçado leitor, é especialmente difícil e exigen- saúde – procurarei entrosar-me o mais possível
dades materiais que implicam a criação, para te… Arrisca-se a defraudar os militares, a quem na nova estrutura, num espírito de colaboração e
cada serviço (para cada especialidade médica) entreajuda, só assim será possível fazer a diferen-
de instalações próprias que são, em qualquer ça…Só assim será possível construir algo que é
parte do mundo dito civilizado, de grande exi- verdadeiramente novo na sua essência. Na ver-
gência técnica, logo caras e morosas na sua ade- dade, não se antevia tanto mar pela proa, neste
quação. É necessário, ainda, adequa-las a uma navio tão longe do Tejo, de onde Lisboa parte e
população alargada (dos três ramos). Por outro chega, e onde nos movíamos em águas safas…
lado, é preciso proceder à fusão organizacional
dos vários serviços. Na prática, há que conjugar Recomendo, aos que estão para vir, o tipo de
culturas organizacionais profundamente distin- resiliência e bom senso de quem já conheceu a
tas, que emanam das próprias características fúria que o vento e o sal podem trazer… No en-
dos ramos, mas que têm repercussões profundas tanto, sabem todos os que me conhecem e leem
no modo como os técnicos veem o seu papel e, desde há muito estas frases perdidas, sem jeito,
fundamentalmente, nas expetativas dos utentes também eu sou só e apenas humano. Também
militares… eu sinto saudades e, naquele dia, os gritos me-
lancólicos das gaivotas deram cor à minha sau-
Senti aquela última dificuldade organizacional dade. Porque a saudade foi inventada no mar e
aquando da passagem pelo Instituto de Estudos as gaivotas – sabem todos os que já percorreram
Superiores Militares (IESM). Nesta instituição de a distância solitária entre o azul do grande mar
ensino diferenciado, e apesar de ter frequenta- oceano e o céu – são os seus arautos mais fiéis…
do um curso apenas naval, a integração parecia
longe de ter sido suave, era um processo em Doc
REVISTA DA ARMADA • MAIO 2013 31