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REVISTA DA ARMADA | 488

NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA						                                                                               35

O camaroteiro

“ -Isto de passar as festas neste inferno não tem jeito! Estas cantigas que as balas alemãs nos trazem aos
ouvidos não me agradam nada.
“-Coragem, Malha Vacas. A Paz voltará…”

A história de Aníbal Milhais, o soldado Milhões, herói português da I Guerra Mundial, Francisco Galope, 2014

Ali estava ele, o meu mais constante camaroteiro. Aguardava           Marinha, fizeram de mim. E sorri, ainda, tantos anos volvidos, tan-
    uma consulta no Hospital das Forças Armadas. Conheci-o, há        tas aventuras passadas. De certeza que ele próprio pensou nisso,
muitos anos, logo no primeiro navio em que embarquei, cruzei-me       com mais ou menos a mesma clareza, a mesma tonalidade…
com ele nos navios, foi meu camaroteiro em Timor. Para aqueles –
não marinheiros – que ocasionalmente leem estas palavras, o Ca-         Ocorreu-me então, assim num ápice, que são estes sentimen-
marote não é uma localização no teatro, ou numa arena desporti-       tos e estes acontecimentos que melhor definem quem somos,
va de onde melhor se vê o espetáculo em relativa privacidade. Na      como pessoas numa instituição que na alma se entranha. Senti
gíria naval, consagrada pelo tempo, é um alojamento, individual       então – e foi quase um arrepio – que não fora eu também um
ou coletivo, atribuído a Oficiais ou Sargentos…                       camaroteiro e nenhuma destas histórias (…e já são muitas) teria
                                                                      visto a luz do dia…
  O médico, por boas razões, é um grande utilizador do camarote.
Não faz Quartos à ponte. Tem sempre, ou quase sempre, “noites           A essência da vida militar, estou seguro, é esta partilha de des-
de almirante” e pode dormir. Tive múltiplos camaroteiros. Alguns      confortos e situações inusitadas a que os normais empregos das 9
nem deram por mim. Outros, tinham carismas muito próprios.            às 17h não têm acesso. A essência da medicina naval talvez deva
Houve um que trabalhava horas a fio, no bom e no mau tempo,           passar por esse íntimo conhecimento, essa experiência pessoal
de modo que o batizei como o “Oficial-Que-Pior-Nome-Dá-À- Ma-         e intransmissível… O mesmo se passava já nos desconfortos da
rinha”, pois trabalhava demais… muito para além do que a saúde        I Guerra Mundial. Guerra onde muitos sofreram e partilharam ami-
aconselhava. Outro camaroteiro preferia o beliche de cima, mas        zades e encorajamentos, como aqueles expressos na citação acima.
acabava por dormir sempre em baixo, pois fazia repetidas luxa-
ções do ombro, com a subida…                                            A vida é um lugar estranho, onde pequenos episódios, que não
                                                                      valorizámos, crescem até um lugar de honra no nosso ser. É mes-
  Tive um outro camaroteiro, dos primeiros Oficiais que conhe-        mo verdade o provérbio com que a minha avó me despedia quan-
ci, que estranhava a facilidade com que o médico novato dormia        do eu ia estudar para longe:
a bordo, suportando o barulho, a qualquer hora, como aconte-
cia com o “fantasma das correntes” (o cabo da aguada, que por           - “Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”.
qualquer razão que ainda hoje não descortino completamente,             Que belas companhias… Cumprimentos.
arrastava as suas correntes de forma muito ruidosa), que levava
a cabo as suas assombrações entre as 3h e as 5h da manhã, e as                                                                                  Doc
luzes que teimavam em acender a qualquer hora, por motivos de
serviço mais ou menos claro. Um dia, como outro qualquer a na-
vegar, verificou o médico que a luz de leitura estava avariada. Ora
o problema não era a dificuldade em acender, era que não se apa-
gava. Não, interruptor para a direita, interruptor para a esquerda,
nada… luz na face. Mesmo assim o médico dormiu, a única dife-
rença foi que se tornou mais difícil ainda distinguir dia e noite…

  Contudo, um milagre, para o qual também hoje não encontro
explicação, resolveu subitamente a avaria. Aconteceu quando,
cerca de um mês depois, esse Oficial percebeu que o médico já
trazia anos de duro traquejo em residência universitária dos ser-
viços sociais, onde as únicas regras se resumiam à total ausência
de regras, temperadas pela rudeza da anatomia e dos outros exi-
gentes acepipes do curso de medicina (que faziam parecer o ca-
marote um verdadeiro “Ritz”, completo e com pequeno almoço
incluído) …Também, como por magia, já não se acenderam luzes
a horas estranhas, nem me recordo mais de assombrações na-
quele navio…

  Podia contar muitas mais histórias. Aquele boneco usado no
“treino de homem-ao-mar”, que comigo partilhou uma “rígida”
noite, todo aperaltado de “madama”. Aquela vez em que havia
uma emergência pelas três da manhã e, por um mistério incom-
preensível, toda a farda tinha encolhido: sapatos, calças, camisa,
só o cinto e as meias pareciam fazer sentido… Não consegui vestir-me
em tempo útil. Fui depois admoestado por não ter cumprido com
a devida prontidão e, sem hesitar, arquei com as consequências
em suaves prestações…

  O camaroteiro que encontrei ficou-me na alma pelo riso – di-
ferente – e pelo humor acutilante. Sobretudo, naquele dia, lem-
brou-me de mim mesmo… daquilo que os marinheiros, que são a

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