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REVISTA DA ARMADA | 529


           NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                      70







                                                                     O marinheiro


                                                                        que não sabia

                                                                        sonhar…




















          “ (…) Aqui ao leme sou mais do que eu:
          Sou um Povo que quer o mar que é teu;
          E mais que o mostrengo, que me a alma teme
          E roda nas trevas do fi m do mundo,
          Manda a vontade, que me ata ao leme (…)                                                                Desenhos de Paulo Guedes
                               In “o Mostrengo”, a Mensagem, Fernando Pessoa

             minha mente é como um arquivo, mais ou menos arrumado,   herói marinheiro. Acrescentou, ainda, que era uma terapêuƟ ca
         A  indexado pelo peso do senƟ mento. Trata-se de uma forma   anƟ ga e que toda a gente a bordo sabia. Era uma injeção “para
          estranha de ser, que já me trouxe forte perseguição, alguma   aqueles que não sabiam sonhar…” – afi rmou convicto. SenƟ -me
          admiração e, as mais das vezes, indiferença e incompreensão.   menos capaz por não ter percebido de imediato o sofrimento do
          Desta vez saltou de lá o Sr. Cágado, o marinheiro que não sabia   Sr. Cágado, mas, até hoje, ainda não encontrei defi nição mais
          sonhar…                                             elegante para a doença mental…
           Cedo, na minha carreira de Médico Naval, passei muito tempo   Percebi muito mais naquele navio, percebi que o nosso amigo
          em comissão nas ilhas da bruma: o Arquipélago dos Açores. É   não teria família, ou vivia emocionalmente afastado dela, o que
          verdade, também sempre esƟ ve atento às várias parƟ cularidades   é a mesma coisa. Percebi que o Navio era a sua verdadeira casa e
          das pessoas e, sim, desde há muito tempo que tenho um “cader-  que, quer esƟ vesse a navegar distante, ou na Base Naval, residia
          ninho de anotações”, para onde passam as emoções que na alma   lá, no seu beliche naval. O Sr. Cágado deu corpo na minha alma à
          me surgem… O Sr. Cágado era um homem de meia idade, com   poesia acima. Este “agarrar ao leme” defendeu-o (e talvez ainda
          um tronco largo de mais para a sua fraca altura, do qual saía um   defenda) dos mostrengos que o perseguem. Percebi, também,
          pescoço fi no, pegado a uma cabeça de movimentos lentos, que   que todos, sem exceção, o tratavam com um grande respeito.
          fazia lembrar o animal de carapaça, que lhe foi atribuído como   Percebi, fi nalmente naquele tempo, que havia uma (pelo menos
          alcunha… Reparei, desde logo, que Ɵ nha um olhar vago, como se   uma) insƟ tuição capaz de integrar a diferença de um modo hon-
          visse para além do horizonte próximo e, de algum modo, o vazio,   rado e respeitoso. Achado raro nos tempos que correm…
          para além de nós próprios.                           Ora, precisamente nos tempos que correm, há cada vez mais
           O próprio pouco se importava com a alcunha. Aliás, falava   pessoas “que não sabem sonhar”. A Marinha tem sabido enqua-
          muito pouco e nunca me lembro de o ver rir, ou entrar naquele   drar a diferença no seu seio e, inúmeras vezes, é capaz de for-
          modo folgazão, tão caracterísƟ co do ambiente a bordo. Contudo,   necer uma razão de vida a quem procura um caminho seguro.
          era rigoroso no cumprimento do dever e nada se lhe pedia que   A sua matriz intrínseca é, dei disso inúmeros testemunhos nes-
          não fosse prontamente resolvido, ao mais pequeno detalhe.   tas histórias, eminentemente humanitária. Do Sr. Cágado nunca
          Também nunca o vi enjoar ou demonstrar desespero ou má von-  mais ouvi falar, espero que esteja bem… tenho a certeza que a
          tade perante a inclemência dos elementos, que naquele inverno   Marinha conƟ nuará a preencher algum vazio que lhe poderá fal-
          foram especialmente duros para quem o mar demandava…  tar na alma. Pergunte a si próprio,  o marinheiro leitor assíduo, se
           Algum tempo mais tarde, estando eu na enfermaria, percebi   o mesmo não acontecerá consigo?
          que o enfermeiro preparava uma injeção de um psicofármaco.
          Perguntei-lhe para quem era. Disse-me que era para o nosso                                         Doc


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