Page 418 - Revista da Armada
P. 418
voz da abita
De António Maria da Silva Car- dade, outras na mira de recebe-
valho, mar. CM, do N.R.P. «Zaire », rem alguma guloseima. QUARTO DE ALVA
recebemos a narração do seguinte «Abri a caixa. Várias latas de con-
episódio: serva constituíam a refeição. Abri Noites perdid as
a primeira que me veio à mão, sem tino, nem fim .. .
era de fruta. Comi e gostei. Abri Que noites desertas!. ..
UMA BOA LIÇÃO a segunda. Era de carne e não
me agradou. Noites iguais, sempre iguais,
«( ... ) Em 1861, durante a primeira
«Chamei uma criança que estava às outras noites!
comissão de serviço da fragata
perto. Era uma miúda magra, fran-
«Álvares Cabral» por terras de
zina e que aparentava não ter Noites perdidas,
Moçambique, como fazia parte
mais de dez anos. Os seus gran- nas perd idas noites
do pelotão de desembarque, fui
des olhos negros brilharam de à procura do nada ...
nomeado para seguir com a Com-
contentamento quando lhe estendi
panhia n.O 9 de Caçadores Espe-
a conserva. Noites escuras,
c iais, estacionada em Lourenço
«- Queres? - perguntei-lhe. perdidas na treva !
Marques, num grande exercício.
«- Quer sim .. . Siô! Sem luz; sem luar.
«Muitas centenas de quilómetros
«- Toma, então. E eu de vigília
foram percorridos sob um sol es-
«Pegou nela e retirou-se. Segui-a nas ondas do mar!
caldante, no interior da província,
com os olhos. Alegrou-me a satis-
durante os cinco dias que durou
fação com que com ia. Via-se bem E tu, meu amor,
o exercício.
que tinha fome e lhe estava a sozinha no lar !
«Sofri muito, mas fiquei a conhe-
agradar a comida. Contando inquieta
cer melhor a vida no interior afri-
«De repente parou, como se ideia as horas perdidas
cano. Foi essa a minha compen-
súbita lhe ocorresse. das noites sem luar ...
sação.
<<Intrigado inquiri:
«É desse tempo o episódio que
«- Então, estás a gostar? Carmo Pinto
vos vou contar e que constituiu 1.o-sarg. H
«- Está sim! Gosta muito, mesmo!
para mim uma lição.
«- Então come o resto.
«Ao pôr do Sol do terceiro dia
«- Não.
de viagem, a coluna militar de
«- Não?! Só se já não tens fome.
que eu fazia parte estacionou À MINHA · QUERIDA
Disseste que gostavas!. ..
junto duma pequena sanzala para FRAGATA
«- Gosto sim, siô, e tem fome, mas
pernoitar. «NUNO TRISTÃO))
vai dar àquela velha, além.
«Sentia-me exausto. O dia tinha
«Olhei. No chão, a escassos
sido fatigante. «Matosinhos, 2 de Outubro de
quinze metros, estava sentada
«Procurei a sombra de uma ár- 1972.
uma mulher dos seus sessenta
vore onde me abrigar dos raios «Que triste fiquei ao ver-te na
anos.
solares, que dinda aqueciam, doca que te deram como sepulc
«-Ah! É a tua avó, não?!
naquela hora tardia. Sentei-me tura ...
«- Não! Né nada, mas tá cocua-
e saquei da ração de combate «Será que ficas aí eternamente?
ne (a) e eu vai levá.
que me havia sido distribuída. Como são ingratos os homens!
«E sem mais palavras, partiu a
Era a primeira vez que me ia «Como ·me recordo das alegrias
cumprir o que dizia.
servir daquele tipo de alimenta- que me proporcionaste, quando
«( ... ) Que belo exemplo de soli-
ção. «O apetite, confesso, não me levavas a «passear» para fora
dariedade humana eu tinha aca-
era grande. O cansaço, esse sim, do meu Portugal. Recordas-te da
bado de presenciar! ( ... )>>
era enorme. Inglaterra, da Irlanda, da Holanda,
«À minha volta, como é costume da Bélgica, da França, dos Aço-
(a) Velha.
nestas alturas, juntaram-se vá- res e da Madeira? Já não pode-
rias crianças, umas por curiosi- rás sulcar mais aqueles mares,
20