Page 51 - Revista da Armada
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mSTóRIAS  DE  MARINHEmos

       80-Privilégios





            sta é  uma das histórias  mais
            conhecidas  da  minha  gera-
       Eção. Ouvia-se com frequência
       a bordo dos navios, a propósitos vá-
       rios, num tempo em que a canhonei-
       ra,  a que aludia, ainda se balouçava
       no dorso do mar inquieto.
          Chamava-se  «Mandovi»,  e pas-
       sou longo tempo da sua vida no Nor-
       te. No intervalo dos cruzeiros, estava
       fundeada  no Douro, onde aliás per-
       manecia  temporadas,  dadas  as  in-
       clemências  do  mar  fecharem,  com
       frequência,  uma  barra  estreita  e
       difícil.
          A  guarnição  era  toda  do  Norte.
       Havia, nisso, vantagem para o servi-  tar é,  de algum modo, exemplo dos   Os civis,  nos corredores, remoeram
       ço.  O pessoal, sentindo-se  próximo   sentimentos fraternos de uma popu-  a frustração  inesperada.  A  invasão
       das famílias,  andava mais pronto e   lação para com a gente de um insi-  da maruja comprometia seriamente
       mais contente.  Não  havia  castigos.   gnificante navio de guerrra, cuja im-  as suas expectativas. O prestígio da
       As detenções a bordo, a verificar-se,   portância, a seus olhos, excedia lar-  farda e a novidade de estranhos de-
       seriam custosas de suportar. Já não   gamente as escassas toneladas do   certo  despertaria  a  preferência das
       era  o  contacto  com  a  terra  que  se   seu deslocamento.         moças, em número escasso para to-
       perdia -  e esse. um mal menor. Era   Aconteceu que, uma vez,  por al-  dos.  Porém,  quando  se  amortece-
       a solidão de bordo mais pesada com   tura das festas do S. João, chegaram   ram os últimos compassos do «pas-
       as familias tão próximas.         ao  Porto uns dois ou três navios de   so-doble"  que  a  orquestra  tocara,
          O navio como que pertencia à ci-  guerra do programa de 30.       um dirigente da associação, solene,
       dade. Aos domingos, as visitas eram   Num dos dias festivos realizava-  tomou a posição central do  salão, ba-
       permanentes.  Juntavam-se  peque-  -se  um  baile  numa  associação  re-  teu as palmas e pediu silêncio.
       nas  embarcações  particulares  que,   creativa da cidade.  Ao canto do sa-  Formou-se  uma  atmosfera  ex-
       num  vaivém contínuo,  traziam e  le-  lão, e  sobreelevada  numa platafor-  pectante. Os marinheiros -  dos na-
       vavam  familias  inteiras que vinham   ma, a pequena orquestra afinava os   vios e da  «Mandovi ..  -, perplexos,
       ver como era um navio de guerra por   instrumentos. A toda a volta, ao lon-  ficaram  num grupo à  parte. Os che-
       dentro. E a guarnição, amável, cice-  go das  paredes,  alinhavam-se  filas   fes de família e os rapazes, curiosos,
       Tonava o navio todo. Mesmo o aloja-  de  cadeiras,  onde  mamãs  atentas   comprimiram-se nos corredores, jun-
       mento dos oficiais,  à  popa,  era de-  escoltavam  moças  casadoiras.  Pe-  to  às portas de acesso.  As  mamãs,
       vassado,  com  permissão  do  oficial   los  corredores,  chefes  de  família   receosas,  e  as  moças,  estas  ainda
       de serviço.                       conversavam em voz alta, entre a fu-  um pouco ofegantes do ritmo vivo da
          Muita vez o eléctrico, que passa-  marada  dos cigarros.  E os  rapazes   dança,  como  que  suspenderam  a
       va em  frente,  a  um pequeno aceno   novos, prontos a avançar aos primei-  respiração.
       esperava  por elementos  da guarni-  ros compassos da orquestra, já es-  E  foi  neste  ambiente,  um  tanto
       ção  que  iam  desembarcar.  Mesmo   preitavam das portas os pares que,   ansioso, que o dirigente. martelando
      não havendo, como hoje, as pressas   no íntimo, tinham escolhido.    aspalavras. proclamou terminante:
      de  trãnslto,  é  de  assinalar  que  os   De  repente, ouviu-se  uma alga-  -AQUI, QUEMÉOA "MAN06-
      passageiros não formulavam protes-  zarra  animada  pela  escada  acima.   VI·  OÂNÇA;  QUEM  NUM  É  NUM
      tos  pela  demora,  nem  exibiam  se-  Era  um  grupo  numeroso  de  mari-  OÂNÇAf  ...
      quer um vago gesto de contrarieda-  nheiros dos navios que, acompanha-
      de.  Parecia  que  o  navio  era  como   dos pelos da «Mandovi .. -  convida-  Os marinheiros dos navios, resi·
      coisa sua. Bem agarrado à terra co-  dos  habituais  -, se  preparavam   gnados, buscaram os bonés e retira-
      mum, num abraço estreito de cabos   para disfrutar uns momentos de ale-  ram. Só permaneceram os da "Man-
      e espias, com uma guarnição de  con-  gre convívio.                  dovi».  Esses, como membros da fa-
      terrâneos, a «Mandovi» integrava-se   Entraram  para  o  salão  no  mo-  mília,  tinham  os  seus  privilégios ...
      bem naquele bocado de paisagem ri-  mento exacto em que a orquestra ar-
      beirinha.  Era,  afinal,  um  bocado do   rancava,  logo arrebatando. sem de-              Silva Braga,
      Porto!. ..                         longas,  todas  as  moças  e  não  sei                        valm
         A história que me proponho con-  bem se alguma mamã desprevenida.   ••••••••••••••••••••

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