Page 7 - Revista da Armada
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EDITORIAL
António Sérgio
Um dos mais geniais pensadores portugueses do seu tempo,
ilustre oficial da Armada e devotado aluno do Colégio Militar
aquele frio fim de tarde de 24 de da Republica em 5 de Outubro de 1910, a cujo
Janeiro de 1%9, no Hospital da Cruz movimento revoludonârio não tinha aderido,
N Vermelha Portuguesa, em UsOOa, CUffi- altura em que, já com três anos de segundo-
pria eu um serviço de escala como médico resi- -tenente, resolveu abandonar a vida naval,
dente, quando. interrompendo uma leitura entrando primeiro na situação de licença ilimita-
interessada e amena, retiniu no meu gabinete o da, até 5 de Junho de 1915, data em que, a seu
telefone. Atendendo imediatamente, ouvi a pedido. foi exonerado de oficial da Armada.
\'oz monocórdica, serena e despreocupada, da Ficava assim com maior disponibilidade para os
enfermeira de serviço a um dos pisos, inior- \'oos irreprimíveis do seu espírito arguto e
mando que acabara de falecer o doente de inquieto, em assomas inultrapassáveis de idea-
detenninado quarto, solidtando, por isso, na lismo, de humanismo, de solidariedade, de
ausência do respecti\·o médico assistente, a liberdade e de critica, que mais tarde lhe viriam
minha comparência, para a necessária e regula- a custar a prisão e o exílio, este por duas \'eles, a
mentar confinnação do óbito. primeira de 1926 a 1933 em França, e a segunda
Passadas escassos minutos encontrava-me de 1935 a 19+4 em Espanha, o que demonstra
diante de um corpo inerte e lívido, deitado no bem como não raras vezes entre nós a estultícia,
catre hospitalar, sem respiração, sem pul.s.1ção cardíaca e de olhos a tacanhez e o confonnismo se têm lamenta\'elmente sobreposto à
vidrados e midriáticos, não me deixando qualquer dúvida de que inteligência, à hombridade e ao desassombro.
dai se evolara para sempre a chama ténue e efémera da precária Inspirado na \~da e na obra de Alexandre Hercu1ano, paladino
\~da terrena. Mas, ao olhar com mais atenção para aquele rosto do liberalismo, e de Antero de Quental, prosélito do socialismo,
hirto e esvaecido, pareceu-me reronhE(er, rememorando fotegrafi- por si considerados como "os dois grandes directores espirituais de
as de revistas e jornais, a fisionomia de alguem que era importante tcxIos os portugueses de boa \'ontade", a sua vida e a sua obra são,
figura pública nacional. Logo compulsando os dados identificati- por seu lado, um repositório precioso e inalienável de acções e
\'os do respectivo boletim clínico de internamento, lá esta\'a: publicações do maior valor e significado. São de destacar a criação
António Sérgio de Sousa, nascido a 3 de Setembro de 1883. do Instituto Português de Oncologia, quando, durante apenas dois
E foi assim, desta maneira singular e algo macabra, o meu pri- meses, foi ministro da Instrução PUblica em 1923, a fundação, com
meiro e único contacto com quem foi um dos mais brilhantes inlf-" outros, da "Renascença Portuguesa", da "União Inlelectual
lectuais portugueses deste século, jXllígrafo e ensaísta preclaro, cri- Portuguesa" e da revista "Pela Grei" I precuISOra da "Seara Nova",
tico e polemista eminente, filósofo e sociólogo abalizado, doutrina- onde pontificariam outros grandes vultos das Letras portuguesas,
dor cooperativista e pedagogo honesto e reflectido, conferencista e como Jaime Cortesão, Raúl Proença e Câmara Reys, e, ainda, os
jXllítico (mas só de passagem .. .) sabedor e competente. célebres "Ensaios", verdadeiros monumentos de saber, de talento,
Mas porqué trazer aqui à colação tão insigne personagem, aliás de profundidade intelectual e de critica construtiva.
já recordada nas páginas desta Rt'\ista em Fevereiro de 1980, atra- E, neste País que no último ano foi palco de alguns aconteci.men-
\'ÉS de prestimosa colaboração da Biblioteca Central da Marinha, o tos insólitos e até ridículos, como a despudorada exibição pública
que muito me apraz registar? Mais do que e,·ocar a efeméride da de inestéticos rabos desnudados em estapahírdias manifestações
sua morte, ocorrida precisamente há 25 anos, pretendo, acima de estudantis, t'\"entualmente geradoras de confrontações policiais \;0-
tudo, fazer constar, com toda a força do meu ânimo, nesta mal" lentas, umas e outras indesejáveis, quanto a mim, num País que se
-afortunada época em que, no nosso Pais, tanto se procura denegrir pretende civilizado e democrático, o falar de vacas loucas com lou-
a Instituição Militar, que não é sua vocação estiolar ou abafar as cura ainda maior do que a dos próprios animais, o trazer à ribalta
faculdades ou as virtudes imanentes dos seus membros. Bem pelo como primeiras figuras inefáveis criaturas do agitado mI/ilda da ooln,
contrário, comprazendo-se em cultivar, no seu seio, o saber e a cri- sem o mínimo valor nadonal mas á,~das de um vedetismo desen-
atiddade, a disciplina e a responsabilidade, a honra e o brio, a freado, o impingir-nos debates telt'\ish'os .sempre com os mesmos
abnegação e a coragem, a renúncia e o patriotis- r----~.!IIiIi "caras", anódinos mas cansativos, fazendo-nos
mo, como talvez nenhuma outra o lenha feito, lembrar por vezes OS impagá\'eis "marretas", O
pode orgulhar--se de ter dado â Nação filhos pretender fazer-nos crer que Portugal é um
dos mais nobres e mais ínclitos, que muito têm "oásis económico" numa Europa de economia
dignificado e prestigiado Portugal. em grave crise, etc., el(., nada melhor do que
António Sérgio é exemplo marcante do que um excerto dum daqueles "Ensaios" do deno-
acabo de referir. Oriundo de notáveis famflias dado combatente da liberdade e da
de ofidais da Armada, foi no meio militar que Democracia que fOi António Sérgio, publicado
se processou, enquanto jovem, a sua esmerada em Agosto de 1928, para temUnar este editorial:
educação, Primeiro, como aluno laureado do Nlio ambiciono tirar l1ingz~ém da $1U1 poWicn 011
Colégio Militar, e, depois, como aluno distinto da S/UI fi. Quisua todavia que, seI/do Cl/dn um da
da Escola Na\'al, onde viria a ser o primeiro do IIosle em que SL'ri.\'. o psse com mJJÍ5 ;/lteligillcia e
seu curso, tendo en\'ergado a farda do botão de /lU/is $ilWr, com largue=JJ de â"imo e respeito prcj.
âncora até poucas semanas após a implantação priD, com IMiar probidtutt j/ltefectllnl. J.,
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