Page 114 - Revista da Armada
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'Cltens-Hó
O Gama do Leste
S Chineses são universalmente conhecidos por suas quem quiser ver, não constituem, pois, matéria de crença
originais invenções, como por exemplo. para n6s, ou descrença.
O marinheiros, a da agulha magnética. Não foi para Com tais barcos, e porventura marinheiros da mesma
navegarem, pelo menos durante largos séculos, que ti inven- igualha - são os marinheiros que "inventam- os barcos - as
taram. Mas para ti sua tão querida quiromancia, com pre- suas navegações do passado. quando nós fomos também
sença inalienável em todos os actos da vida, e até na morte. grandes à nossa maneira, são bem dignas de relato e
Mas um dia ela acomodou-se junto do leme dos seus magnr- difusão. E pelos Chineses foram, claro, bem cantadas, pois
ficas e bem construidos barcos, e ajudou dai em diante no quem o seu não canta, mal lhes fica. Só lhes faltou terem foi
rigor das grandes navegações que fizeram. Barcos que, um Camões.
desde o casco às velas, foram outras tantas peças de talento Pois, ao mesmo tempo que entre nós apareciam homens
e de inventiva que ainda hoje maravilham. grandes, operando feitos notáveis, dobrando Bojadores e
Há quem diga que os Chineses exageram sempre naquilo cabos tormentosos, desvendando todos os recantos dum
que dizem ter feito. Nem confirmamos nem desmentimos. Atlãntico até aí praticamente ignorado e carregado de
Pessoalmente, no entanto, calhou de assistirmos a casual e pavores, homens, portanto, que como nós gostamos tanto de
muito discreto desempenho de marinheiro a bordo, que blasonar, os tinham no sf'lo, na distante China, que de nós
ainda gostaria de ver como um ocidental se desembaraçaria nada sabia, também apareceu, entre outros, um homem
em experiência semelhante. Nada menos que, num junco de que ficou na História, e a quem, por sinal, tinham estrangu-
tres velas, portanto já grandote, uma mulher (neste caso. lado os ditos cujos.
portanto, uma marinhe ira), bem franzi na por sinal, pauzi- Foi isto pelo virar do século XIV para o XV. Registam os
nho de vi rar tripas aí com metro e meio de altura, Chi nas, em memorial que chegou até aos tempos de hoje,
manobrar, sózinha, frente à rada de Macau, e com Nturistas~ um grande almirante dos seus mares, e dos oceanos que
a bordo, todas as velas do seu junco, enquanto o marido, chegavam até ao continente Africano: T'Cheng- Hó de seu
calado, fazia o leme. Isto fOi no século XX, embora o junco nome. Chame-se·lhe também, se se preferir, T'Cheng-Hé, ou
aparentasse ser do século passado, com água aberta e tudo. mesmo Tzeng-hé. A fonia anda ela por ela, e, nisto de
Aliás, um junco ser do século vinte ou do século dez, ou Chinês, adaptar fon ia e grafia de Português, tem os seus
oito, não significa grande diferença, O que só demonstra a quês.
suas admiráveis qualidades. Sobreviveu igual a si mesmo,
por muitos séculos. rCheng·Hó nasceu em Yunnan, terrinha do interior
Claro que a diferença não estava na mulher chinesa, mas sudoeste da China, filho de famflia pobre, de culto muçul-
na excelência da vela. Com efeito, na vela chinesa as esco- mano, com o nome próprio de Sanpau, e, de família, Mâ.
las inserem-se de maneira muito diferente da que se usa Tanto seu avô quanto seu pai haviam viajado em grandes
numa vela ocidental. A navios para Meca. como se
própria estrutura da vela, sabe, cidade sagrada dos
com réguas e rústica retran- descendentes de Agar, es·
ca, também é "chinesice- a crava de Abraão, mãe de Is·
que nós, ocidentais, nunca mael. Cresceu, pois, ouvin-
chegámos. A vela chinesa é do contar histórias extraor-
uma estrutura um tanlo com- dinárias sobre as viagens
plicada à vista. Com peque- marítimas, onde provavel-
nas escotas parciais, moi- mente não faltaram as aven-
tões, retornos, e pés-de-ga- turas de Sindbad, mais ao
linha, acaba numa simples gosto mítico , mas simbo·
eSCOla, mas donde toda a lizando as andanças e de·
mareação da vela se faz sem sandanças de marinheiros
esiorço e com notável acui- da Arábia, ou das Arábias,
dade e eficácia. por aqueles mares das ín·
dias, e das Taprobanas,
A estrutura normal do (estas já conladas aliás, na
barco, com compartimen· nossa Revista aqui há uns
tação estanque transversal, anos),
inspirada talvez na estrutura Muito jovem, doze anos
da cana de bambu, o leme apenas, Sanpau ficou óríão
compensado, inovações que de pai. cabendo à mãe a
tardaram séculos a chegar triste decisiJo de ter de
cá, o leme a poder içar-se e vender o filho, como saiu·
arrear·se, consoante os fun- ção para a pobreza da famí·
dos recomendam ou exigem, lia. e ioi parar à mansão de
e várias outras invenções, Desenho esq~mJrico de um siSlemd de desmulriplicaç50 cM escotd rico comerciante, com doze
tudo isso está à vista de dUfTld I'eld chineu mulheres. que de pronto O
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