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A MARINHA HENRIQUINA (4'
Pel. costa II. GuIné
mbora se possa pôr em causa as razões oficiais para que, que o tal espírito pragmático, pouco dado a especulações intelec-
durante quase duas dezenas de anos, não se tenham efectua- tuais, vivia, a!rtamente, sob a imagem da cruzada e da sua valo-
Edo expedições de exploração nos mares a sul das Canárias rização pessoal n.a luta contra o infiel. mas um infiel que estava ali
ou do famoso cabo Bojador, a verdade é que, de facto, tal não mesmo em frente, do outro Jado do MediterrânEO. As explorações
parece ter ocorrido. Segundo se pode deduzir dos relatos, que que promoveu na costa africana explicam-se na busca de um
sempre trazem um pouco do que seria a voz corrente naqueles financiamento apropriado para ti sua empresa marítima e
tempos, foi necessário que o Infante desse instruções especiais a enquadram-se dentro das razões que Zurara considera como ncr-
Gil Eanes, p<lra que, a partir de então, passassem a decorrer via- mais: cabia-lhe a ele explorar OS caminhos de comércio onde, mais
gens periódicas que buscavam chegar cada vez mais longe na tarde, poderiam ir OS mercadores e mareantes, que agora se cin-
costa africana. giam aos territórios conh~dos de há longa data (Médio Oriente,
Entenderemos isto mais facilmente, se recordarmos o que foi a Mediterrâneo e Norte de Africa).
personalidade do Infante, e a sua forma característica de actuar E foi para explorar essas terras do sul que Gil Eanes passou
em todos os empreendimentos que abraçou. Não era dado a além do Bojador em 1434. Começava, de facto, uma nova fase
grandes reflexões, n.'io o apaixonava a filosofia, não perdia tempo para a Marinha Henriquina: juntava às suas missões de corso,
com conjecturas complicadas e, ao contrário dos seus dois innãos proteçç.'io de Ceuta e ataque aos mouros, a exploração da costa,
mais velhos, se respeitava a cultura e , _ ________________ -, cada vez mais para sul, procurando
reconhecia a importância dos estu- fontes de comércio, novas gentes e,
dos superiores, não parece que tenha porque não, algum reino cristão que
usado a sua mente em exercidos de as lendas diziam poder haver.
puro prazer especulativo. O Infante Logo depois da viagem de Gil
era um homem de a~o, um homem Eanes, quis o Infante que se armasse
de vontades férreas, definidas e per- um barinel para que, o mesmo Gil
sistentes (por vezes obsessivas), um Eanes (com a sua barca), acom-
homem que queria as coisas feitas, panhado de Afonso Gonçalves
determinado, empreendedor e prag- Saldaia, voltasse aquelas terras e
mático na forma de agir. Viveu com reconhecesse a costa ainda mais para
a ideia de guerrear os mouros e isso sul. Nessa viagem não avistaram
era normal naquele tempo. Assim o quaisquer populações, mas viram
fez no mar e assim o quis fazer, de rasto de camelos e de homens a pé,
todas as formas e feitios, em terra. suspeitando que se tratavam das ca-
Alargou o espaço de acção do poder ravanas que faziam a rota terrestre
naval português até onde p:xie, com do "ouro do Sudão".
essa mesma ideia: dar caça aos Com estas notícias se tornaram a
navios muçulmanos e às populações I Lagos onde o Infante voltou a insistir
ribeirinhas da costa de Granada e do que procurassem gentes e comércio.
Norte de África. Mas essa actividade Baldaia parte outra vez, com o seu
trouxe consequências que talvez não barinel, e chegaria até ao que
fossem previsíveis à partida. chamou de rio do Ouro, um braço de
Até 1434, os seus navios navega- mar que corre para nordeste e que,
ram por toda a região a sul do Algarve, atravessaram o estreito, pela sua pouca largura foi tomado para um rio. O fundeadouro
sulcaram O Mediterrâneo e "tomavam grossas presas dos infiéis, parecia bom e resolveram desembarcar Heitor Homem e Diogo
com que se tomavam honradamente para o reino". No entanto, Lopes de Almeida, dois jovens cavaleiros que percorreram a costa
sabia muito bem o Infante (como o sabia toda a gente ligada ao em reconhecimento. Encontraram um grupo numeroso de gente
comércio do Mediterrâneo) que do coração da Africa, a sul do local com quem lutaram durante horas, mas não conseguiram
grande poderio muçulmano, que ele queria combater, brotava o aprision.1r ninguém (a ideia de fazer cativos parecia ser o princi-
ouro com abundância: o "ouro do Sudão", que antes vinha ter a pai ob;ectivo) que pudessem trazer para Portugal. Baldaia, voltou
Ceuta e que, em tempos, o Imperador Mansa Mussa esbanjara ao local, no dia seguinte, penetrando na enseada com um batel,
generosamente, por todas as terras em que passara a caminho de mas já só encontrou os sinais do combate. Este primeiro contacto
Meca. Se a empresa de corso, a que se haviam dedicado os seus surpreendera e assustara quem por ali vivia.
navios, cumpria as funções e já levara ao povoamento do Todavia o local era fértil em lobos marinhos, e as suas peles e
arquipélago da Madeira e permitira encontrar algumas ilhas dos gordura eram bastante apreciados pelos portugueses: fez matar
Açores (1427, Diogo de Silves), a tentação de buscar essas fontes alguns, com que carregou o navio e ainda prosseguiu mais p.:1Ta
do ouro que desap.:1recera de Ceuta era grande e, talvez, indispen- sul, até ao local que chamou de Pedra da Galé. Daí se tomou a
sável para sustentar um empreendimento que se revelava dis- Lagos sem registar mais novidades importantes. Estavam expio-
pendioso. radas mais oitenta léguas· de costa, desde a primeira viagem de
Sonharam muitos historiadores bem intencionados, com com- Gil Eanes. O
plic.1dos planos de envolvimento do espaço do Islão e, nalguns
casos foram ao ponto de imaginar, que na empresa do Infante D. • gr.1U = 17 ,sléguas = 60 milhas
!'ienrique, estavam os prolegómenos de um plano para chegar à J. Semedo de MaIos
India e ao reino de Preste João. Não nos parece. Estamos em crer CTENFZ
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