Page 23 - Revista da Armada
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A MARINHA HENRIQUINA (4'


                     Pel. costa II. GuIné






               mbora se possa  pôr em causa as  razões oficiais para que,  que o tal espírito pragmático, pouco dado a especulações intelec-
               durante quase duas dezenas de anos, não se tenham efectua-  tuais, vivia, a!rtamente, sob a imagem da cruzada e da sua valo-
           Edo expedições de exploração nos mares a sul das Canárias  rização pessoal n.a  luta contra o infiel. mas um infiel que estava ali
           ou do famoso cabo Bojador, a verdade é que, de facto, tal  não  mesmo em frente, do outro Jado do MediterrânEO. As explorações
           parece ter ocorrido. Segundo se  pode deduzir dos relatos, que  que  promoveu  na  costa africana  explicam-se na  busca de um
           sempre trazem um  pouco do que seria a voz corrente  naqueles   financiamento apropriado para  ti  sua empresa  marítima e
           tempos, foi  necessário que o Infante desse instruções especiais a  enquadram-se dentro das razões que Zurara considera como ncr-
           Gil  Eanes, p<lra que, a partir de então, passassem a decorrer via-  mais: cabia-lhe a ele explorar OS caminhos de comércio onde, mais
           gens periódicas que buscavam chegar cada  vez  mais  longe na  tarde, poderiam  ir OS  mercadores e mareantes, que agora se cin-
           costa africana.                                      giam aos territórios conh~dos de há  longa data (Médio Oriente,
             Entenderemos isto mais facilmente, se recordarmos o que foi  a  Mediterrâneo e Norte de Africa).
           personalidade do Infante, e a sua  forma  característica de actuar   E foi  para  explorar essas terras do sul  que Gil  Eanes passou
           em  todos os empreendimentos que abraçou. Não era dado a  além do  Bojador em  1434.  Começava, de facto,  uma  nova  fase
           grandes reflexões, n.'io o apaixonava a filosofia, não perdia tempo  para a Marinha Henriquina:  juntava às  suas missões de corso,
           com conjecturas complicadas e, ao contrário dos seus dois innãos  proteçç.'io de Ceuta e ataque aos mouros, a exploração da costa,
           mais velhos, se respeitava a cultura e  ,  _ ________________ -,  cada  vez mais  para sul, procurando
           reconhecia a importância dos estu-                                        fontes de comércio, novas gentes  e,
           dos superiores, não parece que tenha                                      porque não, algum reino cristão que
           usado a sua mente em exercidos de                                         as lendas diziam poder haver.
           puro prazer especulativo. O Infante                                         Logo  depois da  viagem de Gil
           era um homem de a~o, um homem                                             Eanes, quis o Infante que se armasse
           de vontades férreas, definidas e per-                                     um barinel para que, o mesmo Gil
           sistentes (por vezes obsessivas), um                                      Eanes  (com a  sua  barca),  acom-
           homem que queria as coisas feitas,                                        panhado  de  Afonso  Gonçalves
           determinado, empreendedor e prag-                                         Saldaia, voltasse  aquelas terras e
           mático  na  forma  de agir.  Viveu com                                    reconhecesse a costa ainda mais para
           a ideia de guerrear os  mouros e isso                                     sul.  Nessa  viagem não avistaram
           era  normal naquele tempo. Assim o                                        quaisquer populações, mas  viram
           fez  no  mar e assim o quis fazer, de                                     rasto de camelos e de homens a pé,
           todas as formas e feitios,  em terra.                                     suspeitando que se tratavam das ca-
           Alargou o espaço de acção do poder                                        ravanas que faziam  a rota  terrestre
           naval português até onde p:xie, com                                       do "ouro do Sudão".
           essa  mesma  ideia:  dar  caça  aos                                         Com estas notícias se tornaram a
           navios muçulmanos e às  populações   I                                    Lagos onde o Infante voltou a insistir
           ribeirinhas da costa de Granada e do                                      que procurassem gentes e comércio.
           Norte de África. Mas essa actividade                                      Baldaia  parte outra vez, com o seu
           trouxe consequências que talvez não                                       barinel,  e  chegaria  até  ao  que
           fossem previsíveis à partida.                                             chamou de rio do Ouro, um braço de
             Até 1434, os seus  navios navega-                                       mar que corre para nordeste e que,
           ram  por toda a região a sul do Algarve, atravessaram o estreito,  pela sua pouca largura foi  tomado  para um rio. O fundeadouro
           sulcaram O Mediterrâneo e "tomavam grossas presas dos infiéis,  parecia bom e resolveram desembarcar Heitor Homem e Diogo
           com que se tomavam honradamente para o reino". No entanto,  Lopes de Almeida, dois jovens cavaleiros que percorreram a costa
           sabia  muito bem o Infante (como o sabia  toda  a gente ligada ao  em reconhecimento. Encontraram um grupo numeroso de gente
           comércio do Mediterrâneo) que do coração da  Africa,  a sul do  local com quem lutaram durante horas, mas  não conseguiram
           grande poderio muçulmano, que ele queria combater, brotava o  aprision.1r ninguém (a ideia de fazer cativos parecia ser o princi-
           ouro com  abundância: o "ouro do Sudão", que antes vinha ter a  pai ob;ectivo) que pudessem trazer para Portugal. Baldaia, voltou
           Ceuta e que, em  tempos, o Imperador Mansa Mussa esbanjara  ao local,  no dia seguinte, penetrando na  enseada com um batel,
           generosamente, por todas as terras em que passara a caminho de  mas já só encontrou os sinais do combate. Este  primeiro contacto
           Meca. Se a empresa de corso, a que se haviam dedicado os seus  surpreendera e assustara quem por ali vivia.
           navios, cumpria  as funções e já  levara ao  povoamento do   Todavia o local era  fértil em  lobos marinhos, e as suas peles e
           arquipélago da Madeira e permitira encontrar algumas ilhas dos  gordura  eram bastante apreciados pelos  portugueses:  fez  matar
           Açores (1427, Diogo de Silves), a tentação de buscar essas fontes  alguns, com que carregou o navio e ainda prosseguiu mais  p.:1Ta
           do ouro que desap.:1recera de Ceuta era grande e, talvez, indispen-  sul, até ao local que chamou de Pedra da Galé. Daí se  tomou a
           sável para sustentar um empreendimento que se  revelava  dis-  Lagos sem registar mais  novidades  importantes. Estavam expio-
           pendioso.                                           radas mais oitenta léguas·  de costa, desde a primeira viagem de
             Sonharam muitos historiadores bem intencionados, com  com-  Gil Eanes.                             O
           plic.1dos  planos de envolvimento do espaço do Islão e,  nalguns
           casos foram ao ponto de imaginar, que na empresa do Infante D.   • gr.1U = 17 ,sléguas = 60 milhas
           !'ienrique, estavam os prolegómenos de um plano para chegar à                            J. Semedo de MaIos
           India e ao reino de Preste João. Não nos parece.  Estamos em crer                                CTENFZ
                                                                                         REVISTA OA ARMADA · JANfIRO 97  21
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