Page 179 - Revista da Armada

Moisés e a travessia
Moisés e a travessia

do Mar Vermelho
do Mar Vermelho

á cerca de 3200 anos, a dificuldades técnicas e finan-
filha dum faraó, possivel- ceiras, foi terminado pelos
Hmente o grande Ramsés Estados Unidos.
II, encontrou numa das margens Das viagens acima referidas
do Nilo uma alcofa com um apenas vamos destacar a que
recém nascido. A criança, por ser nos conduziu ao Golfo Pérsico
filho de escravos hebraicos, e, exactamente, quando atra-
devia ser morta, pois era assim vessávamos o Canal de Suez a
que rezava a lei vigente. Todavia, partir de Port Said. Nós fazía-
a princesa levou o jovem para a mos como oficial mais mar-
corte onde foi educado. Veio a reta, o quarto da meia noite às
chamar-se Moisés, que quer quatro. Nessa noite, ao rece-
dizer salvo das águas. ber o serviço conhecemos o
Moisés cresce, torna-se ho- piloto Roland (como esqueci o
mem e um dia, já com idade adi- seu verdadeiro nome inventei
antada e inspirado por Deus, este). O Roland, era um fran-
sente que foi eleito para conduzir cês culto e um bom contador
para a Terra Prometida os milha- de histórias. Estava, há longos
res de escravos hebreus, que eram sacrificados com árduos e inter- anos, ao serviço da Companhia do Canal.
mináveis trabalhos, quase todos destinados a exibir a vaidade pessoal Durante quatro horas, em plena escuridão, a conversa foi do maior
dos faraós. interesse, mas no final do quarto tivemos um verdadeiro deslumbra-
Moisés tenta convencer o faraó de o deixar cumprir o desígnio mento, quando os primeiros alvores nos vieram mostrar a paisagem
que recebeu de Deus. O rei não quer ceder. Todavia, o Egipto é magnífica que é o deserto, em especial, quando o vemos comoda-
abalado por dez terríveis pragas e o mente instalados num navio que o
faraó aterrado por tão grave situação atravessa. O entusiasmo foi tal que
consente a saída dos hebreus. Estes nos esquecemos de mandar chamar
reúnem-se, e começa essa longa 0 1 o imediato, que religiosamente nos
marcha, que ficou conhecida pelo 2 3 substituía. Alarmado, apareceu-nos
Êxodo. Grande Lago Amargo 4 5 Ligação mais tarde sem perceber o que tinha
Durante a caminhada, Moisés e os 6 5 Mar Vermelho acontecido.
ao
seus seguidores depararam com o 4 3 2 Foi então que o Roland nos con-
Mar Vermelho. Diz a legenda que um 1 0 Metros tou uma história que nunca mais
vento forte, enviado por Deus, pôs a esquecemos. Foi assim que ele
descoberto o fundo do mar permitin- TRAJECTO DE MOISÉS começou:
do que os judeus passassem a seco. E “Dentro em breve vamos entrar no
mais, que os soldados que os perse- Grande Lago Amargo que, como
guiam, porque o faraó tinha mudado de ideias, foram todos afogados sabe, foi utilizado por Lesseps para diminuir o comprimento do canal
pelas águas. escavado. Pois bem, foi este Lago que Moisés atravessou a pé”.
Moisés não chega à Terra Prometida. Será Josué, a quem ele entre- “Mas isso não aconteceu no Mar Vermelho?”, retorqui.
ga o testemunho, que o conseguirá. Todavia, no Monte Sinai, Moisés “No Mar Vermelho era completamente impossível. Aqui, é muito
ainda escreve os Dez Mandamentos, ditados por Deus. provável que tenha acontecido.
Em Setembro de 1947, éramos então um jovem 2º tenente, desta- De facto, no tempo de Moisés, o Grande Lago Amargo estava li-
camos para o N.R.P. “S. Brás”. Este navio petroleiro, o primeiro que gado ao Mar Vermelho e, portanto, era sujeito às marés que neste se
tivemos na Marinha, desempenhou um papel importante no após 2ª verificavam. Moisés conhecia este fenómeno, que fazia com que a su-
Guerra Mundial, contribuindo para o abastecimento de combustíveis perfície do lago se alterasse ao longo do dia. Assim, conduziu os seus
ao nosso país. homens de modo a chegar ao lago no momento da maré cheia. Fez as
O navio tinha feito até então, quase exclusivamente, viagens para suas preces e as águas começaram, naturalmente, a afastarem-se.
Curaçau e Aruba, duas ilhas que não tinham petróleo, mas que dis- Entretanto, tinha escolhido um trajecto no qual após seis horas se
punham de importantes refinarias. O comandante que fomos encon- atingisse a parte mais funda do lago. Continuando, a maré foi enchen-
trar não se conformou com a monótona rotina de visitar sempre do até ao momento em que Moisés atingiu o outro lado do lago. Aí,
aqueles dois portos do Mar das Caraíbas, e conseguiu que as com- disse aos seus acólitos que era melhor afastarem-se o mais depressa do
panhias abastecedoras escolhessem outros portos para o efeito. local, para evitar que os egípcios os viessem perseguir utilizando
Assim, em cerca de um ano que nos mantivemos no S. Brás, visitá- embarcações. Deste modo, Moisés evitou que os judeus que o acom-
mos Barém no Golfo Pérsico, Curaçau, para que o navio não panhavam percebessem que o fenómeno das marés era cíclico, o que
perdesse o hábito, Port Arthur, no Texas, EUA e, por fim, Saint Peter, poderia comprometer os seus créditos como taumaturgo”.
um pequeno porto perto de Los Angeles. Guardei esta história do Roland por mais de 50 anos. Achei que,
Nas viagens acima referidas tivemos o privilégio de atravessar os agora, era altura de a partilhar com os leitores desta Revista.
canais de Suez e do Panamá que, apesar de não serem os maiores
que se construíram, são, sem dúvida, os mais famosos. Curiosamente, A. Estácio dos Reis
foram ambos concebidos por Ferdinand Lesseps, mas o segundo, por CMG REF

32 MAIO 99 • REVISTA DA ARMADA