Page 68 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (27)



                       Um Grande Homem...
                       Um Grande Homem...




              guardava-me à saída. Há já muito  Tento imaginá-los, no silêncio da noite,  nho vício de dormir sestas, quando dele
              tempo que não o via. A doença  no momento em que se encontram consi-  mais precisam e por isso permite tanto
         A continuava a sua evolução inexo-  go próprios. Posso apenas vislumbrar as  sofrimento”. No final, contínuo sem com-
         rável. A atrofia muscular avançava,  noites de  “facas longas”,  cheias de  preender nada...
         reforçando-lhe a magreza e criando uma  memórias e recordações de outros tem-  Noutro dia, frio, algumas semanas
         estranha mímica facial. A cadeira de  pos, que lhes foram – abruptamente -  depois, fui a uma cerimónia de fuzileiros.
         rodas já parecia  maior que o homem -  roubadas. Tento imaginar, finalmente, o  Na parada, um grande grupo, quedo,
         que tinha sido alto, atlético...Era Cabo
         da Classe Manobra, noutros tempos
         gostava de contar façanhas da sua
         agilidade nos mastros da Sagres. Era
         também bom futebolista. Tudo acabou
         quando aquela doença, que ataca pro-
         gressivamente os músculos, o atingiu,
         sem perguntar como ou porquê...
           Refez a vida, o melhor que pôde.
         Desde que a mulher o deixou, fazia arte
         de marinheiro com as mãos, que man-
         tinham parte da habilidade de outros
         tempos. No primeiro ano tudo parecia
         doer mais. O suor da mão na roda da
         cadeira, a dependência dos outros. A
         perda de auto-estima. Tudo era pior...
           Vinha frequentemente ao Hospital,
         lembrou-se de me vir visitar, pelos
         tempos antigos. Fiz o melhor que con-
         segui, para sorrir. No final, sente-se
         sempre um peso metálico, frio, que
         nos molda a conversa. Pelo meu lado,
         doem-me estes encontros porque me
         apetece abraça-lo e gritar a pena...que
         por ele sinto.  A ele talvez também
         apeteça abraçar-me, pela solidão em
         que se encontra. Mas não, continuá-
         mos numa conversa de circunstância
         social do tipo “tu cá, tu lá” , que não
         contém nem verdade, nem empatia.
         Enfim, senti nesse dia, tal como dizia
         um vagabundo bêbado que conheci,
         faz muito tempo, na Almirante Reis:
         “...os homens são cobardes quando se
         toca na alma...”. É bem verdade,
         somos uns cobardolas...
           Dois dias depois, na Urgência de um
         outro Hospital – num corredor api-
         nhado - sentei-me, por falta de outros
         cómodos,  numa cadeira de rodas,
         durante a passagem dos doentes, entre
         quem cuidou deles na noite e quem
         vem pela manhã. O sentir do couro
         gasto impressionou-me ao afundar, o
         toque do aço no aro frio da roda loco-
         motriz quase doía – levantei-me e saí  sentir profundo da incapacidade que os  suportava estoicamente o vento forte e a
         assim que pude, com mesma rapidez com  atinge e a minha pena aumenta...  chuva. No palanque, pouco fechado, a
         que se foge de uma maldição...     Aumenta também a vergonha dos meus  chuva atingia democraticamente grandes
           Oprimia-me, ainda, a memória do  queixumes, por coisas que – nesses  e pequenos, com naturalidade infantil.
         Cabo M...Não consegui, no resto do dia,  momentos – considero mesquinhas...  Nesse dia gelado, no silêncio formal dos
         deixar de pensar nele. E eu - que julgo ter  Nesses dias luto com este mundo e com  discursos, consegui até imaginar um outro
         tido uma vida dura -  não consigo conce-  o outro, pois - como dizia um Judeu no  dia, uma outra cerimónia. Nessa cerimó-
         ber como pessoas como ele levam a vida.  holocausto – “talvez Deus tenha o estra-  nia, num dia mais quente, iam louvar e

         30 FEVEREIRO 2003 • REVISTA DA ARMADA
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