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HISTÓRIAS DA BOTICA (27)
Um Grande Homem...
Um Grande Homem...
guardava-me à saída. Há já muito Tento imaginá-los, no silêncio da noite, nho vício de dormir sestas, quando dele
tempo que não o via. A doença no momento em que se encontram consi- mais precisam e por isso permite tanto
A continuava a sua evolução inexo- go próprios. Posso apenas vislumbrar as sofrimento”. No final, contínuo sem com-
rável. A atrofia muscular avançava, noites de “facas longas”, cheias de preender nada...
reforçando-lhe a magreza e criando uma memórias e recordações de outros tem- Noutro dia, frio, algumas semanas
estranha mímica facial. A cadeira de pos, que lhes foram – abruptamente - depois, fui a uma cerimónia de fuzileiros.
rodas já parecia maior que o homem - roubadas. Tento imaginar, finalmente, o Na parada, um grande grupo, quedo,
que tinha sido alto, atlético...Era Cabo
da Classe Manobra, noutros tempos
gostava de contar façanhas da sua
agilidade nos mastros da Sagres. Era
também bom futebolista. Tudo acabou
quando aquela doença, que ataca pro-
gressivamente os músculos, o atingiu,
sem perguntar como ou porquê...
Refez a vida, o melhor que pôde.
Desde que a mulher o deixou, fazia arte
de marinheiro com as mãos, que man-
tinham parte da habilidade de outros
tempos. No primeiro ano tudo parecia
doer mais. O suor da mão na roda da
cadeira, a dependência dos outros. A
perda de auto-estima. Tudo era pior...
Vinha frequentemente ao Hospital,
lembrou-se de me vir visitar, pelos
tempos antigos. Fiz o melhor que con-
segui, para sorrir. No final, sente-se
sempre um peso metálico, frio, que
nos molda a conversa. Pelo meu lado,
doem-me estes encontros porque me
apetece abraça-lo e gritar a pena...que
por ele sinto. A ele talvez também
apeteça abraçar-me, pela solidão em
que se encontra. Mas não, continuá-
mos numa conversa de circunstância
social do tipo “tu cá, tu lá” , que não
contém nem verdade, nem empatia.
Enfim, senti nesse dia, tal como dizia
um vagabundo bêbado que conheci,
faz muito tempo, na Almirante Reis:
“...os homens são cobardes quando se
toca na alma...”. É bem verdade,
somos uns cobardolas...
Dois dias depois, na Urgência de um
outro Hospital – num corredor api-
nhado - sentei-me, por falta de outros
cómodos, numa cadeira de rodas,
durante a passagem dos doentes, entre
quem cuidou deles na noite e quem
vem pela manhã. O sentir do couro
gasto impressionou-me ao afundar, o
toque do aço no aro frio da roda loco-
motriz quase doía – levantei-me e saí sentir profundo da incapacidade que os suportava estoicamente o vento forte e a
assim que pude, com mesma rapidez com atinge e a minha pena aumenta... chuva. No palanque, pouco fechado, a
que se foge de uma maldição... Aumenta também a vergonha dos meus chuva atingia democraticamente grandes
Oprimia-me, ainda, a memória do queixumes, por coisas que – nesses e pequenos, com naturalidade infantil.
Cabo M...Não consegui, no resto do dia, momentos – considero mesquinhas... Nesse dia gelado, no silêncio formal dos
deixar de pensar nele. E eu - que julgo ter Nesses dias luto com este mundo e com discursos, consegui até imaginar um outro
tido uma vida dura - não consigo conce- o outro, pois - como dizia um Judeu no dia, uma outra cerimónia. Nessa cerimó-
ber como pessoas como ele levam a vida. holocausto – “talvez Deus tenha o estra- nia, num dia mais quente, iam louvar e
30 FEVEREIRO 2003 • REVISTA DA ARMADA