Page 69 - Revista da Armada
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vam equipas do comando naval e capitania,  o fim do seu tempo nas fileiras. Falámos   Ultrapassada a barreira da pele, somos
         uma equipa da outra corveta em Comissão  da equipa “café com leite” e do Canário  todos iguais, sobretudo no sofrimento. O
         e, finalmente, até uma equipa do Exército.  do qual ele gostaria de ter notícias, porque  Marinheiro Canário, que vai mostrar todos
         Nesse torneio, um outro marinheiro, desta  era seu amigo...           os seus grandes dentes brancos, a quem
         feita um electricista evidenciou-se. Alto e   Muitas vezes penso também eu nele, na  estiver por perto, quando perceber que é
         esguio, de cabelo claro e acentuada alvura  cidade onde moro, na Amadora, onde vive  dele que se fala nesta história, representa
         de tez, este marinheiro era o oposto do nos-  uma grande comunidade de africanos. Sen-  um grande exemplo de integração. Para
         so Canário Negro. No campo, contudo, pro-  te-se uma agressividade crescente, alimen-  isso muito contribui a sua forma de estar e
         duziam uma parelha formidável, de passes e  tada pela população desenraizada de Áfri-  todos os talentos que aqui – sem lhe pedir
         fintas combinadas, como se previamente or-  ca que vive em condições pouco dignas,  licença – desvendei. O seu exemplo en-
         questradas, que cedo produziu vitórias atrás  desadaptada da cultura portuguesa, e pe-  che-me de esperança no país que somos,
         de vitórias, para a nossa equipa – sentia-se  los próprios portugueses que vêm, de um  e onde haverá, certamente, muitos e tão
         no ar, ao observá-los em acção, um senti-  dia para o outro, o seu quotidiano invadido  talentosos Canários Negros, longe do bair-
         mento de bem-estar e harmonia, como se  por pessoas de outras culturas e que a seus  ro de barracas do subúrbio a que as neces-
         algum passe de mágica, dos duendes que  olhos, muitas vezes, têm comportamentos,  sidades, a desconfiança e a ganância de
         nos conduzem a vida, tivesse sido possível  desrespeitadores e mesmo ameaçadores…  alguns homens (alguns nos seus próprios
         juntar dois virtuosos – que ainda por cima  Não sei de quem é a culpa. Provavelmen-  países de origem) os confinaram. Dele fi-
         se completavam de uma forma extraordiná-  te de todos um pouco, mas é certo que a  cam os leitores a saber, que não é bran-
         ria, quase irreal… Foi de tal forma, que pas-  imigração “selvagem” de que temos sido  co nem preto. É o Canário e é um crédito
         saram a ser conhecidos pela equipa “café  alvo, alimentando certamente, com legiões  para a Marinha. A Marinha por seu lado,
         com leite”, aludindo aquele par de imbatí-  de escravos, os lucros de empreiteiros sem  também está de parabéns, por permitir a
         veis virtuosos.                    escrúpulos – que ocasionalmente me pare-  seu modo e sem dúvida, frequentemen-
           No jogo deixou de haver preto, ou bran-  cem dominar tudo no nosso país, desde a  te, com dificuldades, que todos aqueles
         co, havia só jogar bem para não perder e  política ao futebol – muito tem contribuído  que se acham diferentes se possam reali-
         havia amizade duradoura, como aconteceu  para isto. Agora há que resolver a situação.  zar como seres humanos com a dignida-
         entre os dois… Na verdade se falo do Ca-  Esta parece resolver-se se oferecermos dig-  de que essa condição implica. Não será,
         nário agora, hoje e aqui, foi porque encon-  nidade, em vez de sofrimento. Se houver,  assim concordará o leitor, um dos seus
         trei o seu companheiro de futebol, recen-  principalmente, tolerância de  parte a par-  menores méritos…
         temente, como funcionário de uma loja de  te. Este é o paradigma que o Canário Negro                  Z
         informática – profissão que abraçou após  bem representa                                            Doc.



             Marinheiro Mouranense fez 100 Anos
             Marinheiro Mouranense fez 100 Anos



                                                A excepção foi ter feito 100
                                              anos de nascido, em Setem-
                                              bro de 2003, José Ferreira,
                                              praça da Armada desde 1924
                                              a 1928 com o n.º 4807.
                                                Este Marinheiro ainda
                                              vivo, preserva a memória dos
                                              seus anos na Marinha, ajuda-
                                              do por um dos filhos e um
                                              neto que nela também pres-
                                              taram serviço e mostra como
                                              as gentes do Sul são tão afei-
                                              tas a planícies como a ocea-
                                              nos e quão antiga pode ser a
                                              tradição numa família.
                                                Não sendo feito inédito –
                                              conhecemos a história da carreira militar  1927, durante 42 dias, participando na de-
                                              de um outro antepassado Mouranense  fesa internacional daquele porto na guer-
                                              que andou pela Marinha entre 1890 e  ra civil que então grassava na China, onde
                                              1896 de seu nome Domingos Raminhos,  teve ocasião de tirar a fotografia que se
                                              patrono dos nosso encontros – é no en-  apresenta junto com esta pequena nota.
                                              tanto feito de assinalar e de dar a conhe-  Porque a memória nos é grata, e porque
                                              cer à comunidade viva que é a Marinha  mais que a memória é o futuro que nos in-
         O MAR José Ferreira em Xangai em 1927.
                                              por se julgar que com esta idade – 100  teressa, não quiseram os Marinheiros de
              memória dos homens também se    anos feitos em Setembro – não deve exis-  Mourão – que há várias gerações servem
              preserva em gestos simbólicos. Uni-  tir outro Marinheiro vivo.  Portugal na Marinha – deixar passar esta
         A  dos pela gesta comum na Marinha,   Da sua caderneta militar, preservada  data em claro, pelo que aqui fica a nota, a
         os naturais de Mourão têm tido ocasião, há  pela família como documento digno de  homenagem e o contributo de um seu con-
         já quatro anos para cá, de celebrar entre si  respeito e boa memória, consta que tirou  terrâneo e amigo.
         esse vínculo com um almoço na Vila Alen-  o número 1 nas sortes, que era boa praça                    Z
         tejana que os viu nascer. O ano que findou  e que esteve embarcado no cruzador Re-      Diocleciano Baptista
         não foi excepção.                  pública em missão em Xangai, no ano de                        2TEN TSN
                                                                                    REVISTA DA ARMADA U FEVEREIRO 2004  31
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