Page 104 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (15)



                               Homem ao Mar!
                                Homem ao Mar!



                                                                                          embarcação iniciou o regres-
                                                                                          so já este estava recomposto
                                                                                          e, sorridente, acenava à guar-
                                                                                          nição, que o aclamava calo-
                                                                                          rosamente. Só depois de subir
                                                                                          para bordo cedeu à “ronha”
                                                                                          e pôs um ar de vítima tiritan-
                                                                                          te, enquanto o embrulhavam
                                                                                          num cobertor e o estragavam
                                                                                          com mimos. Da alcunha é
                                                                                          que nunca mais se livrou: ao
                                                                                          ter, por sua iniciativa, substi-
                                                                                          tuído o manequim, passou,
                                                                                          dali em diante, a ser conhe-
                                                                                          cido por “Cabo Óscar”.
                                                                                           Mas se a navegar um in-
                                                                                          cidente deste género é acei-
                                                                                          te como um risco normal, já
                                                                                          pouca gente admite que algo
                                                                                          semelhante possa suceder
                                                                                          com o navio atracado. Pois
                                                                                          foi novamente na “Capelo”,
                                                                                          um ano depois, que fui, pre-
                                                                                          cisamente, presenciar uma
                                                                                          situa ção destas:
                                                                                           Em trânsito para Timor,
               os perigos inerentes à vida do Mar  de emergência e mais alguma, que o Oficial  fazía mos uma escala em Port Said, à entrada
               um dos mais temidos é a possibili-  de Quarto é informado – por um “passarinho  do Canal de Suez… Ora, como é apanágio
         Ddade de se ser lançado (acidental-  espião” – da possibilidade de ser lançado um  dos povos mouriscos, logo os vendedores lo-
         mente, claro!) borda fora. É que não se trata  “homem-ao-mar” (papel habitual e galhar-  cais tomaram de assalto o espaço envolvente
         apenas de uma questão de nos mantermos à  damente desempenhado pelo nosso bone-  da prancha, transformando-o num autêntico
         tona da água, situação normalmente domi-  co “Óscar”, um manequim em tamanho – e  bazar onde se apregoavam todos os produ-
         nada por qualquer marujo. Trata-se, sobre-  peso! – real, baptizado a partir da bandeira  tos possíveis e imaginários, desde tapetes
         tudo, da angústia de, subitamente, nos ver-  alfabética com o mesmo nome que era iça-  até papiros egípcios que muitos juravam
         mos perdidos na imensidão oceânica, onde  da em tais ocasiões) logo após a passagem  ser do tempo dos faraós. No meio daque-
         um náufrago isolado pouco mais visível é  “entre torres”, à saída da Barra…  la babilónia, bem se afadigava a equipa de
         do que uma cabeça de alfinete emergindo   Não foi, assim, apanhado de surpresa  segurança para manter aqueles “abutres” a
         de uma meda de feno, especialmente de-  quando, na altura prevista, se ouviu alguém  uma distância safa, mas os “abexins”, como
         pois do pôr-do-sol ou quando as condições  gritar com todas as forças “homem ao mar  moscas, logo voltavam a “pousar” assim que
         de visibilidade não são as melhores. A este  por bombordo!”. Imediatamente mandou  a malta virava costas. Um deles chegou mes-
         factor, por si só suficientemente apavoran-  carregar todo o leme para o bordo onde se  mo, com o maior desplante, a apoiar-se no
         te, acresce, muitas vezes, a possibilidade  verificara a “queda” e conduziu uma im-  costado enquanto conversava com um par-
         da presença de tubarões ou, ainda mais fre-  pecável manobra de recolha para a qual  ceiro, não se apercebendo que, no seu mo-
         quente, a baixa temperatura da água, a não  se tinha mentalmente preparado… O que  vimento oscilante provocado pelo vento e
         permitir que a vida humana se mantenha  não estava previsto era, ao chegar junto do  pela ondulação, o navio estava a afastar-se
         por mais de quatro ou cinco minutos.  “boneco”, verificar, embasbacado, que este  da borda do cais… Foi então que se viu, re-
           É por tudo isto que a manobra de “ho-  agitava freneticamente os braços e se movi-  pentinamente, suspenso no vazio… Esbrace-
         mem ao mar” é das mais praticadas na Mari-  mentava como se fosse uma pessoa de car-  jante, tentou recuperar o equilíbrio, mas só
         nha, ou não fosse de primordial importância  ne e osso!... E era, de facto!  teve tempo para largar um impropério (não
         garantir um rápido salvamento em situações   Eis o que se tinha passado: durante uma  percebemos bem mas só pode ter sido!) em
         reais, que não são tão raras como à primeira  ronda, um cabo condutor de máquinas pa-  Árabe antes de desaparecer da nossa vista
         vista se poderá julgar.            rara, por momentos, para recuperar o fôlego  e de se fazer ouvir um sonoro splash!. Ra-
           Um caso bastante curioso sucedeu pouco  e apoiara-se numa zona pouco firme da ba-  pidamente, o plantão correu para o micro-
         depois da minha apresentação a bordo da  laustrada, que cedera e o fizera despenhar-  fone do E.T.O.  e fez soar em todo o navio
                                                                                          1
         fragata “Comandante Hermenegildo Cape-  -se nas águas revoltas. Na sua concentra-  “Homem ao mar! Homem ao mar!... Não
         lo”, no início de 1999, em que fui “cair” no  ção, o Oficial de Quarto nem se apercebera  é exercício!”. Como não havia manobra a
         meio de um Plano de Treino Assistido (leia-se  – e ainda bem! – da agitação criada junto à  fazer e, felizmente, o náufrago não estava
         “avaliado”!) e encontrei o navio em comple-  tolda, a não ser na parte final da manobra de  longe da linha de água, a coisa resolveu -se
         ta polvorosa. Sucede, então, numa das larga-  aproximação ao náufrago. O bote de borra-  com o lançamento de uma bóia e com a
         das para um dia de “guerra total”, em que era  cha foi prontamente arriado e o sinistrado  utilização do croque para pôr a seco aque-
         suposto serem simuladas todas as situações  recolhido num riscar de fósforo. Quando a  le estranho e vociferante peixe.

         30  MARÇO 2006 U REVISTA DA ARMADA
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