Page 102 - Revista da Armada
P. 102
O SEGREDO DO COFRE DE MARFIM
O SEGREDO DO COFRE DE MARFIM
– um desafio à imaginação do leitor –
stamos em 1927. A China está envolvida numa longa luta çar as fechaduras ou mesmo arrombá-las. Diz que já tentou mas
entre dois nacionalismos. Os Portugueses estão em Macau. não consegue esclarecer o assunto directamente com o cônsul
EE também participam na defesa do Settlement Internacional por via telegráfica.
de Xangai. Para reforçar a nossa presença, o cruzador República, Guilherme Ferraz pega no cofre, examina-o demoradamente, vira-
depois de uma longa viagem por três oceanos e estadia em Macau, o debaixo para cima, de cima para baixo, verifica que a tampa não
chega a 22 de Março a essa cidade que foi emblemática para a mi- abre mesmo e, depois de uma longa pausa, afirma:
nha geração. O navio “Meu caro Pessoa,
era comandado pelo eu conheço muito
comodoro Guilherme bem a história deste
Ivens Ferraz, um ofi- cofre. Foi oferecido a
cial com uma folha de Francisco Paula Bri-
serviços invejável. to, o nosso consul-ge-
O porto de Xangai ral. E sabe por quem?
fica na margem esquer- Nem mais, nem me-
da do rio Whangpoo, nos do que Sun Yat
a 10 milhas do mar e Sen, quando era mé-
ao Sul do estuário do dico em Macau. Não
grande Yang-Tsé. Ali podemos danificar tão
permaneciam mais de precioso objecto. Seria
130 navios de guerra indesculpável”
e mercantes das várias “Assim sendo, só
nações intervenientes vejo uma possibilida-
no Settlement e ainda de: mandar um ele-
centenas de juncos. Por mento da guarnição
isso o República teve de a casa do cônsul, para
fundear a quatro mi- esclarecer o assunto”,
lhas de distância do sugere o engenheiro.
cais de desembarque. “Nem pensar. O na-
E como a corrente no Whangpoo é, por vezes, muito forte, não era vio está em prevenção rigorosa. Não há excepções. Descubra uma
possível fazer o serviço para terra nas embarcações do navio. Por solução, para saber o que está dentro do cofre mas sem o arrom-
isso foi necessário alugar um pequeno rebocador. Era o Emerald, por- bar. E, com urgência, pois pode tratar-se de um documento im-
ventura tradução inglesa dum nome chinês. Tinha como mestre o portante. Ainda a propósito, quero dizer-lhe que se o Paula Brito
Ah Ton, um chinês simpático. não entregou as chaves ao Ah Ton, alguma ideia tinha em mente”,
Poucos dias depois da chegada do cruzador a situação militar insiste Ivens Ferraz.
agravou-se e o navio passa a prevenção rigorosa. O engenheiro retira-se da camarinha, pois conhece bem o como-
A guarnição já estava a bordo há mais de 48 horas quando, debaixo doro e sabe que não é dos que voltam atrás. E reflecte: “Não mere-
de uma chuva intensa, o Emerald se aproxima. O Ah Ton faz gestos, ce a pena insistir. Todavia, essa de não autorizar que um oficial vá
pede para atracar. E, em inglês achinesado, diz que tem uma encomen- a terra, só porque o navio está de prevenção, é que não encaixo.”
da do cônsul geral para o comodoro. O rio mandava pouca água. O Ainda pensa pôr assunto ao imediato, mas desiste. Acha melhor
Emerald atraca ao República, como era hábito. O Ah Ton entrega a en- dialogar com um dos camaradas de bordo. Tem de arranjar uma
comenda ao oficial de serviço, o 1º tenente engenheiro maquinista. saída para este intrincado caso.
Miguel Cardoso Pessoa é um distinto oficial que, desempenhan- Há a bordo um jovem oficial que Pessoa muito preza. É o guar-
do as funções de chefe de máquinas, sem dúvida o mais importante da-marinha Eugénio Conceição e Silva. Além da sua inteligência
serviço do navio, tem mantido, ao longo duma viagem de milhares superior e de extraordinária apetência para a matemática, tem um
de milhas, uma elevada operacionalidade do sistema propulsor. E sentido prático para encontrar soluções de problemas aparente-
conseguiu este sucesso apesar de dificuldades no abastecimento de mente insolúveis. Pessoa tem com ele um óptimo relacionamento e
carvão, por vezes de fraco poder calorífico, o que impedia alcançar não hesita. Vai até ao seu camarote. Fecha a porta e fala do seu pro-
a velocidade desejável para o navio. Ivens Ferraz, numa obra admi- blema: “Que fazer para sair desta embrulhada? Como saber o que
rável que escreveu após a comissão ao Oriente faz referências elo- está dentro do cofre, cumprindo as determinações do comodoro e
giosas a este oficial. 1 sem mandar buscar a chave pelo Ah Ton. Não percebo bem qual é
Entretanto o Ah Ton, depois de atracar o Emerald foi, como era a razão. Mas ordens são ordens. Há que cumprir”.
costume, até à coberta para cavaquear com a marinhagem, o que –––––––––––––––––––
fazia com a ajuda de dois mainatos que tinham vindo de Macau e No próximo número desta Revista saberemos qual foi a solução
que lhe davam ajuda na língua de Camões. encontrada por aqueles dois distintos oficiais, encafuados num ca-
A encomenda enviada pelo consul, vinha envolvida por uma fla- marote do cruzador República, fundeado ao largo de Xangai numa
nela branca. O tenente Pessoa desembrulha-a e depara com um belo tarde de chuva.
cofre de marfim. Está fechado. Tem duas fechaduras. E as chaves? Z
Manda chamar o Ah Ton, que lhe responde: A. Estácio dos Reis
“Não trazer. Mr. consul ter dito que Ah Ton perder as chaves.” CMG
Perante esta resposta o tenente dirige-se ao comodoro, mostra- Nota
1
O Cruzador República na China, Subsídios para a História da Guerra Civil na Chi-
-lhe o cofre e conta-lhe esta insólita história. Como admite que na e dos Conflitos com as Potências. Ministério da Marinha, Imprensa da Armada,
o cofre traga algum documento importante, sugere tentar for- Lisboa, 1932.
28 MARÇO 2006 U REVISTA DA ARMADA