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HISTÓRIAS DA BOTICA (46)



             O Taifa com um filho natural...
             O Taifa com um filho natural...


                                         do coração...
                                         do coração...


               m dos aspectos menos conhecidos  – um novo começar… Só que sabe Doutor, o  tecer, pois os filhos são o carinho que lhes es-
               da vida a bordo é a relação, forjada  rapazinho é negro. Estacou e ficou hirto, de re-  tamos dispostos a dar. Quando ele crescer só
         Ua navegar, entre o pessoal da Taifa e o  pente, como se algo o empurrasse, quando fa-  vai reconhecer um pai – que vai ser você. E
         pessoal de Saúde. Essa relação começa por ser  lou da cor do bebé. Calou e olhou para o chão  quer para si, quer para a sua mulher, nada mais
         profissional: os taifas, não saberão aqueles que  gabinete, agora trespassado por um sol tímido,  vai importar, só importará o que de bom ele
         não conhecem a Marinha, são os responsáveis  quase amargo…            conseguir na vida. No final ele vai ser ter tan-
         pela comida, cozinhada e servida nos navios.   E então? – Perguntei eu, com o ar mais neutro  to vosso, que já ninguém se importará se ele
         Os taifas, são, ainda, os ma-                                                     é branco, preto, ou amarelo.
         queiros e os socorristas a bor-                                                   Todos saberão apenas – con-
         do, complementando o Servi-                                                       clui com a certeza da verdade
         ço de Saúde. Por outro lado, a                                                    – que é parecido consigo, que
         relação passa rapidamente a                                                       é seu filho…
         social, quando o Doutor aceita                                                      O Taifa, que talvez não es-
         o inevitável convite para provar                                                  perasse esta resposta, repetiu
         o pão com chouriço – que o                                                        algumas vezes: “filho natural
         Sr. Cabo Cozinheiro trouxe lá                                                     do coração”, “filho natural
         da terra…Não é de estranhar,                                                      do coração”, soa bem dou-
         portanto, que um Taifa, amigo                                                     tor. Repetia a frase devagari-
         de embarques passados, me                                                         nho, quase a sussurrar como
         saudasse entusiasticamente no                                                     se precisasse, primeiro de se
         Centro de Medicina Naval.                                                         convencer a si próprio. Final-
           Depois dos efusivos cumpri-                                                     mente, perguntou?
         mentos e da lembrança de via-                                                       - Então acha que tudo vai
         gens antigas, num agora distan-                                                   correr bem? – a pergunta indi-
         te Mar das Caraíbas, o nosso                                                      ciava a necessidade da espe-
         Taifa pediu-me alguns momen-                                                      rança que a palavra pode dar.
         tos a sós, parecia sério…                                                         Respondi-lhe seguro – Vai. Es-
           - Preciso de um conselho                                                        tou certíssimo, na medida em
         seu! – Afirmou com ansie-                                                         que o Sr. Taifa gosta muito dele,
         dade.                                                                             vai vê-lo crescer, ser homem
           Deixei a consulta acabar, por                                                   e corresponder aos cuidados
         fim chamei-o, lá bem no fundo                                                      que agora recebe – principal-
         estava, qual velha coscuvilhei-                                                   mente quando tiver idade para
         ra, curioso…O Sr. Taifa depois                                                    compreender as dificuldades
         de mais algumas trivialidades,                                                    que os seus pais do coração
         lá me confessou que a esposa não podia ter fi-  que o momento permitiu. Então trouxemo-lo e  carregaram ao longo dos anos…E sabe isto de
         lhos – Tentamos tudo Doutor: vários tratamentos,  gostamos muito dele. Mas sabe Doutor, às vezes  preto e banco vai acabar por cair em desuso,
         vários hospitais, vários médicos de nada serviu…  é muito difícil. Os meus pais vieram da terrinha e  em todos os países, e também no nosso…Saiu,
         Houve um silêncio permitido (…é que há muito  dizem-me, entre dentes, que o menino é simpáti-  menos efusivo do que entrou, mas por certo
         percebi que para saber ouvir, é preciso antes de  co, mas logo tinha que ser assim, tão escuro. Ou  mais leve do que entrou…
         mais saber calar…). Nesse silêncio ocorreu-me  que nós estávamos tão bem sem filhos, para que   Também eu fiquei mais leve. Achei que o
         porque nunca me esqueci deste Sr. Taifa, ele tinha  nos fomos incomodar com trabalhos…Os meus  mesmo servia para mim, quando me sinto per-
         uma vasta colecção de livros policiais a bordo,  camaradas, esses, chegam a gracejar com a cor  dido na estranheza que no meu próprio filho,
         que amiúde comentámos…Recuperou o fôlego  do menino facto, que ele sai a mim no cabelo  ainda doente, me causa. Também, só com ca-
         e continuou – Por fim, desiludidos, eu e a minha  e outras idiotices parecidas…Os meus sogros,  rinho e amor se transportam outras tantas das
         esposa decidimos avançar para a adopção de  também não aprovaram lá muito… A verdade  ironias em que a vida é fértil. Senti-me, também,
         uma criança. Foi díficil, sabe Doutor, inspeccio-  é que gostamos muito dele e a nossa vida pas-  feliz, por um simples marinheiro achar que de
         naram-nos a saúde, inspeccionaram-nos a casa,  sou a ter um objectivo...  algum modo eu o poderia ajudar. Será isto ser
         inspeccionaram-nos até o bendito. Passaram-se   Percebi, finalmente, a angústia que lhe per-  médico, será ser “padreca”, não sei, nem isso
         quase dois anos até que, finalmente, nos liga-  passava o olhar. Nesta sociedade menos (mui-  hoje me interessa particularmente…Talvez, isso
         ram – tinham um rapazinho para nós…Novo  to menos que perfeita), deve ser duro apesar do  sim, seja apenas “Ser- da –Marinha”…
         silêncio, como que a preparar o clímax que se  Século XXI, conviver com uma situação destas.   Encontrei o Taifa e a família uns dias depois,
         adivinhava, já até aqui tudo parecia quase per-  Por momentos também eu fiquei em silêncio.  por acaso, numa grande superfície da Margem
         feito…Continuou mais lentamente desta vez –  Depois, alguns longos minutos de pois, lembrei-  Sul do Tejo, que eu não conhecia. Lá estava
         O rapazinho estava no Hospital da Estefânia, a  me de lhe atirar com esta:  ele, a mulher – uma jovem bela e elegante,
         mãe abandonara-o. Lembro-me que na manhã   -Olhe vai dizer a todos que ele é seu filho  que atestava o bom gosto e a sensibilidade do
         que o vimos pela primeira vez, nem sabíamos  natural. É natural do seu coração. E continuei  Sr. Taifa e, é claro, o Filho do Coração. Este tem
         bem o que usar, era – e sorriu de forma contida  no mesmo tom – É o que vai de facto acon-  uma cor que não assustou a minha filha mais

         30  JUNHO 2006 U REVISTA DA ARMADA
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