Page 212 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (46)
O Taifa com um filho natural...
O Taifa com um filho natural...
do coração...
do coração...
m dos aspectos menos conhecidos – um novo começar… Só que sabe Doutor, o tecer, pois os filhos são o carinho que lhes es-
da vida a bordo é a relação, forjada rapazinho é negro. Estacou e ficou hirto, de re- tamos dispostos a dar. Quando ele crescer só
Ua navegar, entre o pessoal da Taifa e o pente, como se algo o empurrasse, quando fa- vai reconhecer um pai – que vai ser você. E
pessoal de Saúde. Essa relação começa por ser lou da cor do bebé. Calou e olhou para o chão quer para si, quer para a sua mulher, nada mais
profissional: os taifas, não saberão aqueles que gabinete, agora trespassado por um sol tímido, vai importar, só importará o que de bom ele
não conhecem a Marinha, são os responsáveis quase amargo… conseguir na vida. No final ele vai ser ter tan-
pela comida, cozinhada e servida nos navios. E então? – Perguntei eu, com o ar mais neutro to vosso, que já ninguém se importará se ele
Os taifas, são, ainda, os ma- é branco, preto, ou amarelo.
queiros e os socorristas a bor- Todos saberão apenas – con-
do, complementando o Servi- clui com a certeza da verdade
ço de Saúde. Por outro lado, a – que é parecido consigo, que
relação passa rapidamente a é seu filho…
social, quando o Doutor aceita O Taifa, que talvez não es-
o inevitável convite para provar perasse esta resposta, repetiu
o pão com chouriço – que o algumas vezes: “filho natural
Sr. Cabo Cozinheiro trouxe lá do coração”, “filho natural
da terra…Não é de estranhar, do coração”, soa bem dou-
portanto, que um Taifa, amigo tor. Repetia a frase devagari-
de embarques passados, me nho, quase a sussurrar como
saudasse entusiasticamente no se precisasse, primeiro de se
Centro de Medicina Naval. convencer a si próprio. Final-
Depois dos efusivos cumpri- mente, perguntou?
mentos e da lembrança de via- - Então acha que tudo vai
gens antigas, num agora distan- correr bem? – a pergunta indi-
te Mar das Caraíbas, o nosso ciava a necessidade da espe-
Taifa pediu-me alguns momen- rança que a palavra pode dar.
tos a sós, parecia sério… Respondi-lhe seguro – Vai. Es-
- Preciso de um conselho tou certíssimo, na medida em
seu! – Afirmou com ansie- que o Sr. Taifa gosta muito dele,
dade. vai vê-lo crescer, ser homem
Deixei a consulta acabar, por e corresponder aos cuidados
fim chamei-o, lá bem no fundo que agora recebe – principal-
estava, qual velha coscuvilhei- mente quando tiver idade para
ra, curioso…O Sr. Taifa depois compreender as dificuldades
de mais algumas trivialidades, que os seus pais do coração
lá me confessou que a esposa não podia ter fi- que o momento permitiu. Então trouxemo-lo e carregaram ao longo dos anos…E sabe isto de
lhos – Tentamos tudo Doutor: vários tratamentos, gostamos muito dele. Mas sabe Doutor, às vezes preto e banco vai acabar por cair em desuso,
vários hospitais, vários médicos de nada serviu… é muito difícil. Os meus pais vieram da terrinha e em todos os países, e também no nosso…Saiu,
Houve um silêncio permitido (…é que há muito dizem-me, entre dentes, que o menino é simpáti- menos efusivo do que entrou, mas por certo
percebi que para saber ouvir, é preciso antes de co, mas logo tinha que ser assim, tão escuro. Ou mais leve do que entrou…
mais saber calar…). Nesse silêncio ocorreu-me que nós estávamos tão bem sem filhos, para que Também eu fiquei mais leve. Achei que o
porque nunca me esqueci deste Sr. Taifa, ele tinha nos fomos incomodar com trabalhos…Os meus mesmo servia para mim, quando me sinto per-
uma vasta colecção de livros policiais a bordo, camaradas, esses, chegam a gracejar com a cor dido na estranheza que no meu próprio filho,
que amiúde comentámos…Recuperou o fôlego do menino facto, que ele sai a mim no cabelo ainda doente, me causa. Também, só com ca-
e continuou – Por fim, desiludidos, eu e a minha e outras idiotices parecidas…Os meus sogros, rinho e amor se transportam outras tantas das
esposa decidimos avançar para a adopção de também não aprovaram lá muito… A verdade ironias em que a vida é fértil. Senti-me, também,
uma criança. Foi díficil, sabe Doutor, inspeccio- é que gostamos muito dele e a nossa vida pas- feliz, por um simples marinheiro achar que de
naram-nos a saúde, inspeccionaram-nos a casa, sou a ter um objectivo... algum modo eu o poderia ajudar. Será isto ser
inspeccionaram-nos até o bendito. Passaram-se Percebi, finalmente, a angústia que lhe per- médico, será ser “padreca”, não sei, nem isso
quase dois anos até que, finalmente, nos liga- passava o olhar. Nesta sociedade menos (mui- hoje me interessa particularmente…Talvez, isso
ram – tinham um rapazinho para nós…Novo to menos que perfeita), deve ser duro apesar do sim, seja apenas “Ser- da –Marinha”…
silêncio, como que a preparar o clímax que se Século XXI, conviver com uma situação destas. Encontrei o Taifa e a família uns dias depois,
adivinhava, já até aqui tudo parecia quase per- Por momentos também eu fiquei em silêncio. por acaso, numa grande superfície da Margem
feito…Continuou mais lentamente desta vez – Depois, alguns longos minutos de pois, lembrei- Sul do Tejo, que eu não conhecia. Lá estava
O rapazinho estava no Hospital da Estefânia, a me de lhe atirar com esta: ele, a mulher – uma jovem bela e elegante,
mãe abandonara-o. Lembro-me que na manhã -Olhe vai dizer a todos que ele é seu filho que atestava o bom gosto e a sensibilidade do
que o vimos pela primeira vez, nem sabíamos natural. É natural do seu coração. E continuei Sr. Taifa e, é claro, o Filho do Coração. Este tem
bem o que usar, era – e sorriu de forma contida no mesmo tom – É o que vai de facto acon- uma cor que não assustou a minha filha mais
30 JUNHO 2006 U REVISTA DA ARMADA