Page 8 - Revista da Armada
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VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA                                                                 9


                 Capitão-de-mar-e-guerra




               diversidade terminológica utilizada pelos autores anti-  o Continente e as Ilhas Adjacentes, garantindo a aterragem se-
               gos e as grandes transformações verificadas em certos  gura das frotas de navios armados vindos do Brasil e da Índia,
         A  períodos da vida da Marinha portuguesa, dificultaram,  atacados por corsários de diversas nacionalidades.
         durante bastante tempo, a compreensão da evolução da sua hie-  Como evidencia Valdez dos Santos, provavelmente por os ca-
         rarquia. Porém, os estudos de Carbonel Pico, Valdez dos Santos  pitães dos navios que integravam as armadas de guarda-costa
         e Max Justo Guedes esclareceram muitas dúvidas e permitem-  do Brasil e de Portugal, e as frotas de navios armados vindos
         -nos agora conhecer a razão de ser das designações dos postos,  do Brasil e da Índia, passarem a ter, além das suas funções náu-
         por vezes o conteúdo das funções associadas e, até, de alterações  ticas, as de guerra, com o comando de toda a tripulação, quer
         dos conceitos de emprego do poder naval. É neste contexto que  fosse gente do mar para a manobra, quer fosse gente de guerra
         se inserem as breves considerações sobre as principais evolu-  para combater, foram designados de capitães-de-mar-e-guerra.
         ções relacionadas com o posto de                                             O documento mais antigo que
         capitão-de-mar-e-guerra, cujos                                               este historiador conhece onde
         antecedentes se encontram na                                                 é referido um oficial deste pos-
         acção portuguesa no Brasil.                                                  to tem a data de 5 de Novembro
           Certamente por analogia com                                                de 1617, e diz respeito a D. Nuno
         a designação adoptada no Ín-                                                 de Sotomaior, que foi obrigado
         dico, passou-se a aplicar aos                                                a arribar, quando fazia parte da
         capitães-mor das armadas de                                                  Armada que, em Abril de 1617,
         guarda-costa do Brasil a denomi-                                             partira para a Índia.
         nação de capitães do mar. Porém,                                               Refere ainda Valdez dos San-
         este cargo era exercido conjunta-                                            tos que, da mesma época, exis-
         mente com o comando em terra.                                                tem no Arquivo Histórico Ultra-
         Com efeito, no Alvará de 5 de                                                marino várias outras petições
         Julho de 1526, que autoriza o re-                                            de capitães-de-mar-e-guerra.
         gresso a Portugal de Pêro Capi-                                              Contudo, é a partir de meados
         co, refere Max Justo Guedes que                                              do século XVII que são frequen-
         o rei aplica a Cristóvão Jaques o                                            tes as referências ao posto de
         título de governador das partes                                              capitão-de-mar-e-guerra. Pode
         do Brasil. Também refere aquele                                              citar-se, por exemplo, uma Con-
         historiador, que na informação                                               sulta do Conselho Ultramarino,
         levantada nessa feitoria em 2                                                datada de 7 de Outubro de 1677,
         de Novembro de 1528, a pedido                                                que refere uma petição colectiva
         de D. Rodrigo da Cunha, consta                                               dos capitães-de-mar-e-guerra
         que o capitão-mor da armada de                                               dos navios que iam para a Ín-
         guarda-costa se chamava Cris-                                                dia. Era pedido ao rei que lhes
         tóvão Jaques. Dos documentos                                                 fossem atribuídos durante a via-
         citados Max Justo Guedes de-                                                 gem, para o seu serviço particu-
         preende que Cristóvão Jaques                                                 lar, um marinheiro, um grume-
         exercia, simultaneamente, os                                                 te e seis homens de armas. Face
         cargos de governador do Brasil                                               a uma certidão passada pelos
         e de capitão-mor da armada de guarda-costa. Era, em suma,  oficiais da Casa da Índia e Mina, assegurando «ser uso antigo
         capitão de terra e mar.                              dar-se essa regalia», o pedido foi deferido. Porém, estas regalias
           O comércio com o Brasil intensificou-se no início do 2º Quar-  eram justificadas com as elevadas responsabilidades exigidas e
         tel do Século XVI, fruto da produção do açúcar, e os navios que  as qualidades necessárias ao exercício das respectivas funções.
         daí partiam para Lisboa, transportavam cargas cada vez mais  Para António do Couto «o posto de capitão-de-mar-e-guerra é
         valiosas. Por isso, precisaram de ser protegidos do saque realiza-  de grande autoridade, manda absolutamente no seu navio, e
         do, principalmente, pelos corsários franceses. Foi neste contexto  é o mesmo que governador de uma Praça, e nele se não deve
         que Cristóvão Jaques partiu para o Brasil no comando da pri-  obrar coisa sem a sua vontade». Um velho códice existente na
         meira armada de guarda-costa. Os ataques dos franceses agra-  Biblioteca da Ajuda, intitulado «Compêndio do que pertence à
         varam-se depois de D. João III ter recusado casar com a filha de  obrigação de um Capitão-de-mar-e-guerra», não datado, mas
         Francisco I, e de este ter passado a invocar o direito de mare libe-  com letra que Valdez dos Santos considera ser da 2ª metade do
         rum, contra a tese portuguesa de mare clausum. Para fazer face à  século XVIII, afirma que: «o capitão-de-mar-e-guerra deve ser
         ameaça francesa, o monarca português tentou organizar frotas  ciente, valerozo, robusto, sofredor de trabalho, vigilante, afável,
         de navios armados e regulamentar as suas partidas de e para  rigoroso, cortez, liberal e sobretudo bom cristão». Foi certamente
         o reino. D. Sebastião reforçou estas medidas em 3 de Novem-  para regulamentar os direitos e as obrigações dos capitães-de-
         bro de 1571, pelo Regimento sobre Navegação, onde determinou o  mar-e-guerra, que em 31 de Março de 1722 surgiu o Regimento
         armamento dos navios e a organização das frotas do comércio  do Capitão de Mar e Guerra e mais oficiais das Fragatas da Coroa, e
         brasileiro. Porém, tais medidas não foram cumpridas e as per-  em 24 de Março de 1736 foi publicado, o Regimento das Fragatas
         das continuaram. Em 3 de Julho de 1592 foi criada a Casa do  ou Regimento da Boa Ordem, que constituem os dois primeiros
         Direito do Consulado, com a obrigação de manter uma armada  documentos estatutários do posto.
         de guarda-costa com 12 navios prontos a patrulhar o mar, entre                                        Z

         6  JANEIRO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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