Page 35 - Revista da Armada
P. 35
O Abraço de Deus à Humanidade
é inspirador dos nossos gestos
Peter Paul Rubens (1577-1640) / Adoração dos Reis Magos (1628-29) / Óleo sobre tela / Museu do Prado
Mesmo sabendo que o conceito e a vivência do Natal se foram Com a sua maneira de ser e de estar, D. António transformou-se
constantemente desvirtuando, é com imensa esperança que rapidamente numa pessoa incómoda para muitos e idolatrada
mais uma vez ocupamos este nosso espaço de reflexão e de men- para muitos mais.
sagem numa quadra que nos traz outra certeza incontornável: é Dos seus escritos, retiramos esta citação impressionante:
que mesmo desvirtuada, é uma quadra à qual ninguém é indife- «As nossas igrejas, celebram liturgias esplêndidas, mas quando
rente. É única e mágica. se trata de arregaçar as mangas falta muitas vezes a toalha, o
A ela todos, mas mesmo todos, associam “qualquer coisa”, jarro não tem água, e a bacia não existe… Quando fui nomeado
mesmo que muitas vezes seja pouco. Quase como se estivessem bispo, puseram-me o anel no dedo, o báculo na mão e deram-me
a celebrar, mesmo não sabendo muito bem quem, nem o quê. a Bíblia: são os símbolos do Bispo. Seria bom que no novo ceri-
E então? Vamos fazer do Natal um simples compromisso com o monial se desse ao bispo um jarro, uma bacia e uma toalha. Para
calendário? Claro que não. lavar os pés ao mundo sem pedir, como contrapartida, a crença
Mas então, o que é que celebramos de verdade? em Deus. Tu, Igreja, lava os pés ao mundo e depois deixa andar:
Muito simples: celebramos um gesto que acreditamos divino, o Espírito de Deus conduzirá os viajantes onde quiser.»
que convoca a humanidade para outros gestos. Um Deus com Foi um bispo sem motorista que habitava numa casa episcopal
rosto humano que nos convoca para o mais puro dos humanismos. sem secretários. Usou um báculo e uma cruz peitoral de madeira
Sem desprezarmos outras abordagens que são sempre hones- de oliveira, símbolo da sua terra natal.
tas, queremos concluir que o Natal é muito mais do que se vai Deixava os pobres dormir na casa episcopal durante o Inverno e
dizendo: sem gestos humanizadores haverá sempre menos Natal. ali acolhia as famílias desalojadas. Quem tocasse à sua porta era
Natal que é sempre um bom momento para colocarmos a pes- sempre acolhido. À noite percorria os cantos mais suspeitos da
soa humana no centro das atenções, acompanhando o Papa cidade para recolher alcoólicos e toxicodependentes.
Francisco no seu discurso aos eurodeputados em novembro de Os jornalistas diziam dele: “Renunciou aos sinais de poder e
2014: “é urgente colocar a pessoa humana no centro deixando escolheu o poder dos sinais”. E muitos o perceberam e amaram.
que ela exprima livremente o próprio rosto… dar esperança Este Bispo teve como norma de vida “acolher a todos”. Para
à Europa implica não só reconhecer a centralidade da pessoa D. Tonino (como carinhosamente lhe chamavam) era Natal todos
humana, mas promover os seus dotes. De igual forma é necessá- os dias. A sua zona de conforto era o desconforto das periferias.
rio enfrentar juntos a questão migratória para que o Mar Medi- Em busca das pessoas.
terrâneo não se transforme num imenso cemitério”. E recordo: D. Tonino viveu no nosso tempo, este tempo que mui-
Caro leitor: se não fica indiferente a esta mensagem e ao que tos teimam em diabolizar, para, quem sabe, justificarem a sua inér-
ela pressupõe, o Natal já está em si. cia. Que o seu exemplo seja também inspirador dos nossos gestos.
E como este espaço também é partilha, deixamos aqui o exem- É isto que desejamos a todos os militares, militarizados e civis
plo de mais uma pessoa diferente com quem nos cruzamos nas da Marinha e às suas famílias em mais um Natal. Assim estare-
nossas leituras dos últimos dias e de quem vale a pena recordar mos sempre muito mais perto uns dos outros.
alguns pormenores de vida. Façamos nossa a certeza de que ainda há muito para construir.
Foi Bispo no sul de Itália. De seu nome D. António Bello (1935-
-1993). José Ilídio Costa
CMG CAP