Page 22 - Revista da Armada
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20 PRINCÍPIOS DE DIREITO MARÍTIMO
A MULTIFUNCIONALIDADE DA AUTORIDADE
MARÍTIMA LOCAL E OS REGIMES
SANCIONATÓRIOS DO FORO MARÍTIMO
PARTE II
Já aferimos, em abordagem anterior, que a auctoritas Com a evolução administrativa do exercício do poder
pública tem que estar revestida de um efectivo poder da Autoridade Marítima Local (AML) ao longo do último
jurídico-sancionatório que permita que as determinações século e meio, e a extrema utilidade de se assegurar uma
DIREITO DO MAR E DIREITO MARÍTIMO
legalmente estatuídas sejam cumpridas, o que pressupõe intervenção pública adequada à prossecução do interesse
que tenha que existir um sólido quadro jurídico que assuma público, bem como a necessidade de se solidificar um
como premissa um vínculo conectivo entre o ente decisor e modelo de autoridade local, sedimentou-se, em definitivo,
a eficácia da executoriedade da decisão tomada. Pelo ime- o capitão do porto como a figura que regula a segurança
diatismo do exercício que lhe é inerente – o universo marí- marítima nos portos, os acessos e operações locais, tendo-
timo-portuário –, e pela necessidade absoluta de agregar -se apurado o objectivo de estatuir prescrições para garan-
o meio de coerção à determinação, a Autoridade Marítima tir a segurança de pessoas, bens, navios, embarcações,
(AM) é, talvez, no ordenamento jurídico nacional, um dos apetrechos e equipamentos, e que, ainda hoje, já depois
exemplos mais característicos que se podem estudar ao da reforma operada nos finais de 2018 com os quatro
nível dos regimes sancionatórios de especialidade. diplomas publicados, se mantém como a estrutura pública
Os fundamentos da tipificação da contra-ordenação local (AML) que apoia, acompanha, monitoriza e regula
encontram-se, pois, além da censurabilidade pública do ilí- as referidas actividades, numa lógica de exercício público
cito, na conectividade do exercício de uma actividade com desconcentrado. Recorde-se que é um cargo que abrangia,
os limites objectivos que a lei lhes impõe. Importa rever, em quadro, até 1986, um misto complexo de competências
ainda que muito brevemente, alguns elementos históricos. técnico-administrativas, policiais e jurisdicionais, e que, por
O nosso ordenamento jurídico tem vindo a desenvolver, imperativo constitucional, se moldou e adaptou às exigên-
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desde inícios do séc. XVII , um conjunto de intervenções cias do foro jurídico-administrativo, e no aplicável, penal,
no âmbito da designada maritime safety, concedendo à desde a reformulação das antigas transgressões marítimas
AM um poder público acrescido perante as comunidades reguladas pelo RGC para o novo regime das contra-ordena-
locais, ribeirinhas, mormente, as piscatórias, pela necessi- ções marítimas.
dade de um acompanhamento sistémico por parte de uma Já antes tínhamos visto que a regulação e sanciona-
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autoridade pública. No entanto, nos primórdios da institu- mento dos actos violadores das determinações do capitão
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cionalização da AM, as funções concedidas ao Patrão-Mor do porto induziu à edificação do Decreto-Lei nº 45/2002,
consistiam no processo de controlo, verificação e vistoria de 02MAR, numa estatuição que preencheu um longo
de embarcações, e em medidas de segurança de navios nos vazio legal e permitiu uma mais apurada, e eficaz, actuação
portos, embora as decisões sancionatórias que lhe esta- da AML.
vam cometidas compreendessem a proibição de prática de
O caminho da percepção das necessidades sociais, dos sis-
determinados actos, e bem assim os âmbitos do acesso e temas locais de desenvolvimento económico, e bem assim
entrada no porto, a proibição de saída do porto, a apreen-
são de embarcações, ou seja, um conjunto de instrumentos a tarefa de análise e construção legislativa, impôs ao legis-
precisos e objectivos que implicavam directamente com a lador, na melhor tradição da estruturação prática do direito
navegação, a atracação de navios e o movimento de carga marítimo nacional, a concepção de mecanismos regulado-
e descarga de mercadorias. res que, com vista à prossecução do interesse público em
Já em finais do Séc. XIX, na última fase de maturação âmbito marítimo-portuário, salvaguardasse propósitos de
legislativa da figura do capitão do porto, com a publica- segurança e de proteção do meio marinho. Assim, foram
ção do Decreto de 1 de Dezembro de 1892, e, oitenta anos importantes – além de alguns regimes já referidos na Parte
mais tarde, em definitivo, com o Regulamento Geral das I, e de entre dezenas de outros que a exiguidade do pre-
Capitanias (RGC) de 1972, sistematizou-se o perfil de inter- sente espaço não permite desenvolver – o Decreto-Lei
venções e respectivo poder funcional sancionatório, sendo nº 64/2005, de 15MAR, sobre remoção de navios encalha-
que, pelo menos 12 das portarias regulamentadoras previs- dos e naufragados, e o Decreto-Lei nº 61/2012, de 14MAR,
tas no Regulamento de 1972 não chegaram a ser publica- que revogou o Decreto-Lei nº 195/98, de 10JUL, sobre o
das, deixando o regime com alguns vazios de previsão nor- controlo de navios pelo Estado do Porto. Pela importância
mativa. O que obrigou, já no início dos anos oitenta, a uma de conhecer os regimes, valerá a pena, ainda que sumaria-
definição legislativa em termos de regime sancionatório. mente, atentar em ambos.