Page 4 - Revista da Armada
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Doces e claras águas do Mondego, Coimbra chegava assim ao princípio da nacionalidade portuguesa,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e pérfi da esperança trazendo consigo uma marca moçárabe e um esƟ lo próprio, que
Longo tempo após si me trouxe cego, atraiu o jovem príncipe Afonso Henriques a tomá-la como a resi-
[...] dência usual da sua corte e o local da chancelaria do reino. Dir-se-ia
Luís de Camões que foi, nessa altura, a capital de Portugal, ou o local escolhido pelo
primeiro rei para um exercício de poder fora do mundo tradicional
ão há outra cidade em Portugal que tenha merecido igual aten- dominado pela velha fi dalguia portucalense. E, nesse aspecto, foi
Nção dos poetas evocando uma saudade tão portuguesa quanto parƟ cularmente importante para a organização do governo, sem a
o país. Cidade mágica, onde pairam ainda os amores de Pedro e qual o velho Condado Portucalense nunca poderia vir a ser o Portu-
Inês, em sussurros que se ouvem com o marulhar das águas do gal independente, que dura há mais de oito séculos.
Mondego, atravessando os séculos até aos dias de hoje. O que terão Quando hoje percorremos algumas das suas ruas estreitas, resquí-
aqueles montes, aquelas casas, aquela Universidade?... cios dessa urbe medieval, é inegável a emoção desta proximidade
Subindo à torre da Universidade (a torre da cabra) e olhando o ser- com a génese da pátria portuguesa. É especial a lembrança desses
pentear do rio, damo-nos conta do senƟ mento de Camões, como de cavaleiros do séquito do rei fundador, mas também porque o velho
muitos outros que ali deixaram uma parte do seu coração. Coimbra Mosteiro de Santa Cruz e os seus frades Ɵ veram um papel fundamen-
será sempre recordada como a cidade do Mondego e da Univer- tal nesta fase da História de Portugal. E com muitas fi guras notáveis,
sidade, que ali está, ininterruptamente, desde 1537. Mas aqueles que Ɵ veram papel determinante na organização e afi rmação do novo
montes por onde a cidade se derrama até ao rio, a parƟ r da “Alta”, reino junto da Santa Sé e da Europa Medieval. A primeira pedra do
albergaram outras senƟ nelas de pedra, com as suas praças de armas mosteiro foi lançada em 1131, apenas três anos depois da batalha
a espreitar o norte ou o sul, conforme quem lá estava, ao que vinha de S. Mamede, que marca a sua afi rmação de poder junto da mãe e
e o que temia. da fi dalguia leonesa, que tentava interferir no governo do condado.
Diz a lenda que Coimbra foi fundada por Hércules Líbio, príncipe Foram os primeiros anos de um novo esƟ lo governaƟ vo, que prende-
do Egipto que, saído do seu país, veio aportar à costa hispânica e aí ram para sempre o rei a este mosteiro, onde está sepultado.
se estabeleceu. As lendas têm a parƟ cularidade de transformar rea- A história de Coimbra é riquíssima em todos os aspectos. Tão
lidades de compreensão diİ cil, em histórias fantásƟ cas que vão ao rica que não seria possível desenhar sequer um leve esboço, neste
encontro dos sonhos dos povos. E, neste caso, é muito provável que espaço curto, não podendo ir além de umas quantas generalidades.
a imagem componha a memória da presença dos fenícios, vindos Considerando o tempo posterior a Afonso Henriques, vou dividi-la
do Levante mediterrânico e adoradores de Hércules, fi lho de Osíris. grosseiramente em duas grandes épocas: uma até ao estabele-
Ocuparam uma povoação celta com nome semelhante ao laƟ nizado cimento da Universidade, em 1537; e outra desde essa época até
Aeminio, que a Idade Média consagrou como Coimbra, depois de perto dos nossos dias.
passar pelos suevos e godos. A cidade, tal como a vemos hoje, tem uma parte alta, na margem
Passou pelo domínio muçulmano, no século VIII, e foi reconquis- direita do rio, onde está a Universidade. Essa zona era, na Idade
tada em 878, por Afonso III, rei das Astúrias. Perdida, de novo, para Média, o núcleo central, onde Afonso Henriques fez o paço real e
o Almançur, em 987, volta defi niƟ vamente às mãos do poder cristão onde viveu a maior parte dos seus dias. Estava rodeada por uma
peninsular, em 1064, com Fernando Magno. O seu governo fi cou a cerca de muralhas – como quase todas as cidades medievais – que
cargo de Sesnando Davides, cavaleiro moçárabe que aconselhou e Ɵ nha origem em tempos mais remotos, com vesơ gios que a arqueo-
parƟ cipou na conquista, fi cando com poderes que se estendiam do logia idenƟ fi ca como pré-romanos. Essa muralha vinha até ao rio,
Douro até à fronteira islâmica. Ali se manteve até à sua morte, em na zona onde é hoje o Largo da Portagem. Aí havia uma porta forƟ -
25 de Agosto de 1091, estando sepultado na Sé. É sabido que este fi cada, com um torreão, e uma ponte que atravessava para a outra
templo data da época de Afonso Henriques, de forma que é certo margem do Mondego.
ter assentado sobre outro mais anƟ go e, provavelmente, sobre uma
velha mesquita muçulmana.
A cidade de
COIMBRA
4 JUNHO 2019