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REVISTA DA ARMADA | 562

          investir no mar (permitindo tirar partido do poder económico); (ii)   Cerca de 13 anos depois dessa sistematização, o Professor Eric
          a capacidade de adaptação às inovações tecnológicas (potencian-  Grove propôs a sua própria conceptualização, tomando por base a
          do a capacidade tecnológica do país); e ainda (iii) outras caracte-  trindade do seu predecessor. Grove recordou que Booth distingue
          rísticas particularmente necessárias a quem queira utilizar o mar,   a função militar da diplomática pelo facto de a primeira envolver o
          como a capacidade de iniciativa, a desenvoltura e o engenho.   uso da força (não só a força concreta, mas também a força latente,
           Estes  três  primeiros  fatores  foram  considerados  como  condi-  i.e., a ameaça de utilização da força), enquanto a função diplomá-
          ções de 1.ª ordem. Grove enunciou depois um conjunto de con-  tica nunca envolverá o uso da força. Mesmo admitindo que o es-
          dições de 2.ª ordem – relacionadas com a situação nacional – que   tabelecimento de uma fronteira entre essas funções será sempre
          considerou também muito relevantes.                 difícil e complexo, Grove preferiu a distinção proposta por James
                                                              Cable, segundo a qual a diplomacia de canhoneira (i.e., a função
                                                              diplomática) pode envolver o uso ou ameaça de uso de força, des-
                             1. Poder económico
                                                              de que seja de forma limitada. Se se passar ao ponto em que a
               1.ª ordem     2. Capacidade tecnológica        provocação de dano (efetiva ou apenas ameaçada) se torna um fim
                             3. Cultura sócio-política        em si próprio, com o emprego ou a ameaça de emprego de força
                             1. Posição geográfica            ilimitada, então Cable considera que se entra no domínio da guerra
                                                              (i.e., na função militar).
                             2. Dependência do mar, em termos de:
                                                               Ou seja, para Eric Grove a separação entre a função militar e a di-
                                    (a) Comércio marítimo     plomática deverá residir no facto da primeira envolver a força ilimi-
                                    (b)  Marinha Mercante     tada e a segunda envolver apenas a força limitada, enquanto Booth
               2ª ordem                                       entendia que na função diplomática se estaria sempre aquém da
                                    (c) Construção naval
                                                              utilização da força, entrando-se na função militar quando se em-
                                    (d) Capturas de peixe
                                                              pregasse a força (concreta ou latente).
                                    (e) Espaços marítimos      Relativamente aos lados do triângulo, Eric Grove propôs que o
                             3. Política e perceção governamental  policing role fosse antes designado como constabulary role (ver
                                                              figura). O termo “constabulary” não tem equivalência na língua
             Condições que determinam o sea power das nações, conforme proposto   portuguesa, mas pode ser traduzido por “imposição da lei”, que
                              por Eric Grove
                                                              parece uma designação mais adequada para esta função do que
           A primeira condição de 2.ª ordem é a posição geográfica, pois   a proposta por Ken Booth, a qual pode levar a alguns mal-enten-
          os países sem ligação ao mar (land-locked) tendem a não pos-  didos, pois as marinhas executam tarefas com conteúdo policial e
          suir marinhas significativas ou a não possuir marinha de todo. De   não tarefas policiais propriamente ditas.
          qualquer maneira, a posição geográfica, per se, tem cada vez me-
          nos importância relativa, sendo necessário atender a outros fa-
          tores geográficos. Com esse propósito, Grove adotou o conceito
          de dependência do mar, proposto pelo almirante Hill no seu livro
          Maritime Strategy for Medium Powers, bem como o conjunto de
          critérios que lhe dão corpo: comércio marítimo, marinha mercan-
          te, construção naval, capturas de peixe e espaços marítimos. Pa-
          íses com elevados indicadores nestes critérios terão uma grande
          dependência do mar e, consequentemente, maiores razões para
          edificar um robusto poder naval, embora o facto de o fazerem
          (ou não) dependa das condições de 1.ª ordem. Isso leva ao último
          fator de 2.ª ordem, que segundo Grove, é a política e perceção
          governamental, em vez do caráter do governo, como proposto
          por Mahan. Com efeito, o governo de cada país é que vai – em
          função  do  alinhamento  político  de  cada  momento  –  priorizar
          umas  políticas  públicas  em  detrimento  de  outras.  A  política  e   CONSIDERAÇÕES FINAIS
          perceção governamental têm assim um impacto importante no
          poder naval e marítimo de um país, inter-relacionando-se com   Gostaria de terminar esta singela homenagem ao Prof. Eric Gro-
          os outros fatores.                                  ve, recordando uma frase sua, do livro The Future of Sea Power,
                                                              que mantém, 30 anos volvidos, toda a sua atualidade: “[No futuro]
          FUNÇÕES DAS MARINHAS                                o sea power continuará a ser mais do que um mero slogan. Será
                                                              um fator vital na ordem política mundial. Os países terão boas ra-
                                                              zões para se interessarem pelo que se passar no mar e quererão,
           À semelhança do que fez com os elementos do sea power maha-  dentro das suas possibilidades, dispor de formas de nele aplicar
          nianos, Eric Grove também refletiu sobre as funções das marinhas   algum nível de força. … Alguns países poderão escolher desmante-
          enunciadas por Ken Booth e que foram abordadas em artigo publi-  lar as suas capacidades marítimas, mas outros, em compensação,
          cado nestas páginas em fevereiro de 2017, sob o título “Marinhas   irão reforçá-las. Tanto o transporte marítimo, como a projeção de
          e Política Externa”. Conforme então descrito, Booth identificou três   poder militar no mar continuarão a ter uma importância crítica.
          funções das marinhas (militar, diplomática e policial) e apresentou-  Haverá muito espaço para a ameaça ou o uso da força no e a partir
          -as numa estrutura triangular, com o uso do mar ao centro. Booth   do mar. Em resumo, o sea power tem um futuro sólido e seguro”.
          entendia esta conceptualização como uma trindade, i.e. três-em-
          -um: três funções que se subsumem no elemento central e agre-
          gador que é o uso do mar, objetivo implícito em tudo o que as                            Sardinha Monteiro
          marinhas fazem.                                                                                   CMG


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                                                                                                     M        5
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