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REVISTA DA ARMADA | 563
ESTÓRIAS 70
GUINÉ, NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS
PARTE I - O FASCÍNIO DOS PORES-DO-SOL
Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes
“Nasceu um soldado”, foi este o texto do telegrama enviado por Dias depois da notícia do meu comando nesta LFP , tenho a mi-
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meu pai a meu avô, anunciando o meu nascimento. Avô, presti- nha primeira operação no rio Cacheu, sem qualquer oportunidade
giado militar, Comandante da Cidadela de Cascais por mais de de obter a passagem de testemunho de alguém com experiência
vinte anos, foi um grande desportista físico, campeão de ténis e naqueles cruzeiros. Iria partir “virgem”, apenas com a tranquilidade
segundo classificado na primeira e única volta a Portugal a cavalo de ter a bordo um sargento Mestre de Manobra, com um ano de
(2000 km) realizada em 1925. experiência na Província.
Mas não foi soldado, tornou-se marinheiro por paixão e não por Fiz então uma longa navegação de mais de dez horas até ao des-
orientação. A minha paixão pelo mar cedo se revelou; com nove tino, permanentemente agarrado ao radar, pois seria um percurso
anos, entrei no Liceu Nacional de Oeiras onde às quartas e sábados, cheio de baixios e, por vezes, com navegação muito ao largo. Che-
uma atividade da Mocidade Portuguesa, que designávamos por gado, por fim, à foz do rio Cacheu, noite cerrada, atraquei junto ao
“bufa”, nos ensinava a marchar. Como alternativa, era possível fazer quartel da vila. Nesse instante, somos surpreendidos por um vio-
vela nos famosos “Lusitos”. Estava traçado o meu destino – o Mar. lento ataque vindo de S. Domingos. Larguei de imediato e pairei ao
Com o decorrer do tempo, aproximava-se a incorporação militar, largo em ocultação de luzes. Soube, mais tarde, ter-se tratado de
que consegui adiar até à finalização do meu curso de Engenheiro um dos mais violentos bombardeamentos feitos à vila de Cacheu.
Silvicultor. Assim, após um processo de candidatura, ingressei em Grande baptismo de fogo. Iniciei, no dia seguinte, o meu primeiro
Fevereiro de 1969 no Curso de Oficial da Reserva Naval. cruzeiro patrulhando entre a foz dos rios Armada e Canjuja.
O culminar do nosso período de instrução foi um cruzeiro à Rapidamente me fascinei com aquela paisagem grandiosa de
Madeira e Cabo Verde a bordo da fragata Nuno Tristão. Pareceu margens densas de tarrafe, interrompidas, de quando em quan-
que o meu desempenho a bordo foi apreciado e, como tal, fui o do, pelas clareiras que, outrora, serviram de acesso ao rio para
primeiro Reserva Naval a ter guia de marcha para África. Poucos escoamento de madeiras e que se transformaram em locais pri-
dias depois da chegada ao Alfeite, fui convocado pelo CEMA, Al- vilegiados para ataques à LF. Mas a beleza da paisagem era de-
mirante Reboredo e Silva, que me recebeu com pompa e circuns- masiado forte para que outros sentimentos pudessem perturbar
tância. Solenemente, dirigiu-me as seguintes palavras: “Em nome aquele fascínio. O momento alto do dia era o pôr-do-sol. Fecha-
da Marinha Portuguesa tenho a honra e o prazer de o convidar va-se então a guerra e, numa cadeira de repouso, à proa, assistia
para comandar um navio da Armada no Teatro Operacional da àqueles momentos únicos, acompanhados pelos incríveis ruídos
Guiné”. Assim, nos primeiros dias de Outubro, lá “rumei para o da selva que, com o cair da noite, se iam reduzindo até ao silêncio
Teatro”! Iniciei então, talvez aquele que foi o período mais inten- absoluto, ao qual se seguia um crescendo de novos ruídos…
so da minha vida e que ainda hoje recordo. Foi graças à Marinha
que tive oportunidade de ter uma experiência de vida única. Foi
um período de grandes acontecimentos e onde tive a ocasião de José Luís Ferreira da Silva Dias, 14.º CFORN
experimentar uma enorme diversidade de funções e acções. In Crónicas Intemporais da Guerra e da Fraternidade, 2019
Chegado a Bissau, após as formalidades da praxe, tive o primei-
ro briefing com o Comandante da Esquadrilha de Lanchas, que N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
me informou que a unidade que iria comandar, a LFP Deneb, iria
sofrer uma grande reparação pelo que, entretanto, iria ocupar o
lugar do Imediato da Esquadrilha, que estava ausente de férias.
Estava escrito que a minha passagem pela Guiné seria recheada Notas
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Construída nos Bayerische Schiffbaugesellschaft GmbH, em Erlenbach am Main,
de imprevistos. Poucos dias após assumir aquelas funções, sou na República Federal da Alemanha; como armamento dispunha de uma metralha-
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chamado ao comando da LFP Bellatrix , pois o seu Comandante dora Oerlington MK II 20 mm, de um lança-foguetes de 37 mm e de duas metra-
acabava de ser evacuado, em virtude de ferimentos sofridos pelo lhadoras MG 42, de 7,62 mm.
rebentamento de uma granada. Foi assim que, repentinamente, 2 Lancha de Fiscalização Pequena; também comummente usado o acrónimo abre-
caí nos braços da Bellatrix. viado LF, muito embora também englobe as Lanchas de Fiscalização Grandes (LFG).
32 JUNHO 2021