Page 318 - Revista da Armada
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A Polar





            ... Uma estrela efémera









                  pesar do espectacular avanço tecnológico que pennite,   se  não  for  filósofo  ou  poeta, a  contemplar o  azul  do firma-
                  aos marinheiros de hoje, navegar com inúmeras vanta-  mento  e  as  estrelas  que  nele  cintilam?  Quem sabe  os  seus
            A gens (maior velocidade, mais comodidade e, em espe-  nomes, as constelações a  que pel1encem, ou os enfiamentos
            cial, maior segurança) em relação aos antigos, há, sem qual-  que permitem encontrá-Ias num buraco de nuvens, para lhes
            quer dúvida, um aspecto em que estes nos  levaram a palma.   apontar,  rapidamente,  a  luneta  de  um  sextante?
               Queremos referir-nos à pennanenle observação dos fenó-  E, no entanto, como as estrelas foram familiares aos anti-
            menos da natureza, que os nautas de OUlrora seguiam atenta-  gos marinheiros! De todas elas, porém, uma houve que merece
            mente  e.  sem  a qual,  não  era  possível andar  no  mar.  Eram   um destaque especial: a estrela Polar. Pela ajuda que deu aos
            os astros, pelos quais se fazia a navegação, eram as nuvens,   navegantes? Sem dúvida,  mas  também  por ser  uma  estrela
            que ajudavam a prever o tempo, e era,  até, o  pequeno  salto   efémera.  Vamos ver  porquê.
            do vento,  que  logo obrigava a ajustar a  mareação das velas.
            E tantas coisas  mais.
               Ainda há poucos anos (não mais do que trinta) os coman-  A PRECESSÃO DOS  EQUINÓCIOS
            dantes,  formados  na  velha  escola,  exigiam,  sem  qualquer
            comiseração, que o oficial de quarto (para não falar do vigia)   Como é  sabido,  o  eixo da  Terra descreve,  em redor do
            se mantivesse permanentemente na ponte alta, onde não havia   pólo norte da eclíptica,  um cone.  Daqui resulta  que o norte
            qualquer protecção contra o vento ou contra a chuva. E, não   do globo terrestre não aponta sempre para o mesmo lugar do
            se julgue, que este  procedimento era apanágio exclusivo do   firmamento.
            nosso país.  Outras marinhas,  como acontecia  na  experiente   Apresentamos uma figura em que se vêem algumas estre-
            inglesa,  faziam  o  mesmo.                        Ias e respectivas constelações a que pertencem, e o caminho
               Quem  não  se  lembra  de  ter  visto  o  oficial  de  quarto,   (que é uma circunferência) descrito na esfera celeste, pelo pro-
            molhado até aos ossos, ou a tiritar de frio, ir escrever o quarto   longamento  none  do  eixo  da  Terra,  nos  26 000 anos  que
            na casa de pilotagem, pois a lona que devia proteger a pequena   demora  este longo  percurso.
            mesa  das cartas da  ponte alta,  não  protegia  mesmo  nada?   Verifica-se,  assim,  que  o  pólo  da  Terra  se  encontra
               Hoje tudo  é  diferente.  Mas  não julgue o  leitor  que,  ao   actualmente muito próximo da estrela Polar, que é a Alfa da
            assinalarmos esta mudança abissal nos hábitos de bordo, que-  constelação Ursa Menor.  Se andarmos para trás, até cerca de
            remos, de algum modo, proceder como um  velho d~ Restelo   1000 anos antes de Cristo, a  estrela  mais peno do pólo era
            ou como um saudosista dos temporais de antigamente.  Sabe-  a Beta da mesma constelação.  E isto é tão verdade que, para
            mos que esta revolução resulta de uma nova concepção da uni-  os fenícios foi esta a estrela Polar, tendo, por isso, sido deno-
            dade naval, onde estão em jogo novos parâmetros, como, por   minada, pelos árabes, a Kaucab-al Schemali, que quer dizer
            exemplo, a defesa contra a ameaça nuclear. De facto, os navios   estrela do  Norte  (a  Kochab dos  nossos dias).
            de guerra modernos têm de poder sobreviver, durante algum   A análise da figura mostra ainda que foi  por volta do ano
            tempo,  numa atmosfera não dependente do exterior, até que   500 da nossa era que o  pólo da Terra ficou  a meia distância
            se desvaneçam os perigos de uma poeira atómica e, por isso,   entre a estrela Beta e Alfa da Ursa Menor.  Como a tradição
            a sua estrutura tem de ser completamente estanque. Assim se   tem  uma  grande  preponderância no  hábito  dos  povos,  e  os
            compreende o divórcio,  agora  imposto,  entre a guarnição e   conhecimentos de astronomia eram muito limitados, admiti-
            os  fenómenos  da  natureza.                       mos que tenha levado um longo período, até que a Beta fosse
               Os  sensores,  num  navio,  deixaram de ser os olhos  e os   abandonada e a Alfa seleccionada como a estrela a que hoje
            ouvidos dos homens que neles vivem, como aconteceu durante   chamamos  Polar.  Não  sabemos,  efectivamente,  quando  tal
            séculos e séculos,  sendo agora substituídos por dispositivos,   mudança se processou, talvez lá para o século XI. pois no iní-
            altamente sofisticados, que transmitem para os displays de uma   cio deste século, a Alfa estava a 6° do pólo, enquanto a Beta
            hermética sala de operações, muito mais e mais precisa infor-  já se encontrava afastada 12°. Sabemos apenas que, em 1272,
            mação do que aquela de que os olhos  e  os  ouvidos  podiam   Raimundo Lula, natural da ilha Maiorca. descreve um instru-
            aperceber-se. Não são apenas as informações sobre os elemen-  mento a que chama astrolabii noctumi (que não tem nada a
            tos  naturais, mas também o avião, que mesmo longe, rapida-  ver com o  que  actualmente designamos  por astrolábio) que
            mente se aproxima, ou  o submarino que prepara um  ataque   servia para  determinar  a  hora durante  a  noite.  Este  instru·
            traiçoeiro. O centro de decisão já não é a tolda dum navio de   mento, que passou a chamar-se nocturlábio, já usava a Alfa
            vem nem a ponte alta dum dreadnought (1), mas sim o ClC (2)   como estrela  Polar, e o segmento de recta que a  unia com a
           de uma  modema  unidade  naval.
               Ganhou-se, certamente, em eficiência, mas o mar e o céu
                                                                 (J)  Couraçado.
            tomaram-se distantes do homem do mar. Quem hoje se detém,   (2)  Centro di!  /nformnçMS de Combali!.
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