Page 16 - Revista da Armada
P. 16

nimo.  É  claro que ele respondia à   novamente e  ele,  devagar,  mw'to   canino era  carn/voro e  assim,  nas
            letra,  ignorando-me.            devagarinho,  resolveu  a  descer   manhãs desses dias, logo que atra·
              Uma ocasião tivemos de deixar   mais  três degraus por ali ficando,   cava o  vapor com as licenças,  sal-
           Setúbal e vir a Lisboa meter farinha   pouco  à  vontade,  envergonhado,   tava  para  dentro dele.  Chegado a
           par  a  população,  a  «Ibo»  a   comprometido.                      terra  procurava  o  Cais  do  Sodré
           saracotear-se toda, água das vagas   A van cei nas comezainas e  en-  onde  tomava  um  cacilheiro que o
           a  varrer-lhe  o  convés.  De  quarto,   quanto comia entretive-me a falar-  transportava à  outra margem.  Em
           com  fome  -  as  panelas  não  se   -lhe:  «"Mondego" amigo,  deixa-te   Cacilhas, dirigia-s8 ao talho em que
           aguentavam sobre o fogão -  tratei   de fitas e  de armar ao pingarelho.   o  navio se abastecia  de carne.  O
           de requisitar sanduiches para las-  Vem para o pé de mim. Não vais ter   carniceiro, já se sabe. regalava-lhe
           trar o est6mago. O criado avançou  o topete de pensares que me con·   sempre  a  pança  com  osso  bem
           da  cAmara  para  a  ponte  com  os   venço seres capaz  de recusar  um   nutrido de aparas.  Para  ali ficava
           pitéus  arrumados  numa  bandeja;   pedaço  desta  carne  estufada  que   até a hora do jantar e, feita a segun-
           «Mondego» saiu  da  porta  da cozi·   estli uma competência,!. Mostrei-lhe   da refeição,  regressava à  unidade,
           nha ao seu encontro, focinho no ar,   a gulodice mas o ladrão baixou os   aproveitando  o  vapor  das  10  da
           seguindo  depois  com  os  olhos   olhos, numa demonstração de aca-  noite.
           aguados  o  que subia pela  escada   nhamento. Fui ter com ele e ofereci-  Raramente o «Mondego» perdia
           para  regalo  do  guarda·marinha.   -lhe  o  pedaço  prometido.  Não  o   o  navio.  Que me lembre,  no meu
           Presenciei a cena e pensei comigo:   abocanhou! Comeu-o serenamente,   tempo,  foram  tr~s vezes.  Quando
            l/eis a  sota//J  Chamei o bicho,  mas   posso afirmar que com delicadeza.   regressávamos  do  mar,  apresen-
            ele não se atreveu a  galgar à  pon-  Desceu então o resto dos degraus   tava-se sem tardança a bordo, res-
            te. Desci uns degraus e estendi-lhe   e veio sentar-se perto de mim, cheio   sabiado, o rabo entre as pernas. Um
            uma  talisca de paio que abocou  e   de  pose,  impecável  quanto  a   marinheiro aguardava-o ao portaló,
            engoliu rápido.  Não podia  dar-me   modos.                         um cabo na mão,  fi  dizer-lhe: rima·
            ao  luxo  de  oferecer  á  excelência   A noticia correu de boca em bo-  landro,  vadio,  vais para o  tronco»,
            metade da ração, mas reservei·lhe   ca  pelo  navio,  fez  sucesso!  O   e passando·lhe o cabo em volta do
            um bocado para dar como sobreme-  guarda-marinha  conseguira  con-  pescoço, amarraV8-0 ao mastro de
            sa.  Quando a  abichou e  perante o   vencer o «Mondego» a entrar na cA-  ré. Ali permanecia silencioso, arre-
            aviso  «acabou-se,  não  há  mais   mara  dos  senhores  aliciais! ...   pendido,  até ao render dos servi·
            nadall, «Mondego/J passou a lingua   Acontecimento inédito,  digno  de   ços,  no dia seguinte.
            pelas ventas, abanou o rabo, voltan-  registo nos anais do NRP «Ibo»! O   Vi-me  uma  vez  enrascado  no
            do em seguida para o seu ponto de  caso não era  para  menos.       Porto, por causa dele. Que dia! Que
            lazer.  «Estás·me no papo/J,  comen·   E  I/Mondegol',  sempre  que  em   faina  exaustiva  a  do  ((MondegolJ
            tei.  Ao  sair  encontrámo-nos,   Lisboa eu jantava a bordo, fazia-me   para  manter afastada  da força  de
            passando-lhe eu a mão pejo cacha-  companhia  e  petiscava  alguma   marujos,  sob  o  meu  comando,  a
            ço;  agradeceu  embora com  displi-  coisa.                          garotada e  o  provo/éu! ...
            cência, pois se limitou a dar ao rabo   Não decorreu muito tempo até    Alguém  a  bordo lembrava  ser
            duas  abanade/as  meio  descon-   que a  guarnição percebeu não po-  conveniente  prender  o  cão,  mas
            soladas.                          der contar com o cão para uns cer·   estava longe de perceber a  verda-
               Com o tempo foi·se estio/ando a   tos serviços.  Uma noite, a horas já   deira causa. Ele à  proa, preso,  viu
            indiferença  até que,  ao  ver-me,  o   adiantadas,  fui dar uma  volta por   afastar-se o escaler rumo a  terra e
            rabo se remexia como galho tocado   todo o navio,  como era meu hábi-  repontou  ruidosamente,  conside-
            por  vento  rijo,  o  que  signjfjcava   to.  «Mondego»  ao  ver-me  veio ao   rando  afronta  grave  dispensa-
            termo-nos  tomado  bons  amigos.   meu encontro, rabo a abanar de sa-  rem-lhe a  companhia.  Como a  ca-
            Acredito que a princípio a amizade   tisfação. Que vi eu ao passar junto   nhoneira amarrara muito perto da
            dele fosse  um pouco interesseira,  a cozinha? O  cabo de quarto ron·   margem,  ((Mondego» presenciOU a
            porque o patife esperava-me pon-  cando  furiosamente.  Acordei-o  e   junção das duas forças -  da ((Ibo»
            tualmente  quando  ia  entrar  de   ainda hoje tenho presente a cara de   e da uMandovil1 -  para uns exercl-
            quarto,  contando com  um pedaço   espanto e o  olhar de censura com   cios de conjunto e  finalmente  viu
            de biscoito  ou  sanduiche  que  eu   que mimoseou o «Mondego». Ime-  desfilar o pelotão.  temo de corne-
            viesse  mastigando.               diatamente encontrei a explicação   teiros à  frente, seguir para destino
               Chegou enfim o dia de assentar-  para o facto do cão durante a noite   por  ele  ignorada.  Latia,  uivava,
            mos e  cerrarmos mais os laços de   ladrar como um desalmado à  apro-  gania  o  bicharoco desapontado! ...
            bons  amigos.  Oficial de dia,  uma   ximação  de  um  oficial:  avisava  o   Dirigiamo-nos para o quartel de
            tarde  em  Lisboa,  ao  dirigir-me  a   marinheiro  responsável  pela  vigi-  artilharia,  na  Serra  do  Pilar,  para
            mesa onde o jantar me aguardava,   Mncia do navio, que o oficial de dia   participar nas  homenagens  fúne-
            olhei a  gaiúta  que dava  acesso à   estava à  vista .              bres a  um oficiaI.  Ao alcançarmos
            cAmara  e  dei  com  o  «Mondego»,   IfMondegoN,  cachorro  de  forte   o começo das instalações da alfán-
            olhar  agudo,  focinho  em  busca   personalidade,  era  conhecido  nos   dega, surgiu ao meu lado, ofegan-
            de  algo  que  lhe  cheirava  bem.   demais  navios  e  até  por  terra  8   te mas todo satisfeito, a  abanar a
            Convidei-o a descer; não se moveu.   dentro.                         cauda, o ((Mondego».  Começou en-
            Insisti e a medo avançou uma pata    As sextas·feiras havia rancho de   tão o sarilho: espantou a  garotada
            sobre  o  primeiro  degrau.  Insisti  bacalhau a  bordo.  Ele,  como bom   que  seguia  a  força  e  também  o

            14
   11   12   13   14   15   16   17   18   19   20   21