Page 347 - Revista da Armada
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o Cap-Hornier








                                            Navegar é preciso ...
                                            Só compreendi, inequívoca e plenamente, o sentido destas
                                            palavras, bem como O fascinio pela navegação à vela,
                                            quando tive a fortuna de embarcar no N.E."Sagres", durante
                                            alguns meses, como chefe do Serviço de Saúde.


            ara  muitos dos nacionais e estran-                                                 dobrar, em navegação
            geiros que o visitaram, e sobretudo                                                 à  vela, o temido cabo
       P para os que, como eu, tiveram ti feli-                                                 Horn, no extremo sul
       cidade de nele navegar, calaTêlffi  fundo no                                             da  América  meridio-
       seu  íntimo, em  cada  um dos seus cantos                                                nal, área de grandes
        ou  ao  virar de cada antepara, o grande                                                tempestades,   com
        peso e responsabilidade de  uma  forte e                                                impetuosos  ventos,
        ancestral  tradição marítima, legada  pelos                                             tenebrosas vagas e for-
        nossos antepassados.                                                                    tes correntes.
         Todo o ambiente de bordo, assistindo                                                     Fizera-o  inúmeras
        às  movimentadas e  pitorescas  fainas  da                                              vezes,  no cumprimen-
        navegilção à vela,  nunca  mais é esqueci-                                              to de extensas  viagens
        do, antes, pelo contrário, é sempre saudo-                                              marítimas,  de  visita  a
        samente recordado e revivido.                                                           territórios  coloniais
          Nem todos os momentos Seio de prazer,                                                 franceses,  situados  no
        já que existem circunstâncias bem difíceis,                                             oceano Paófico.
        por vezes  julgadas infindáveis, em  parti-                                               Participámos da  sua
        cular quando o mar está revolto e o ambi-                                               entusiástica  presença  e
        ente é de temporal.                                                                     afável  companhia du-
          Mas aS  escalas em  porlos nacionais ou                                               rante três dias, em via-
        estrangeiros  possibilitam-nos  o  fácil   o úW-Homil't  com                            gem de B.1rce1ona  para
                                             Mtdilrmf/llO. rom /IIIIr calma
        esquecimento dos maus  tempos. Tudo se                                                  Livorno,  e,  pessoal-
        dissipa quando visitamos  locais aprazí-  Assim aconteceu com um antigo maru-  mente, confesso que o procurava sempre
        veis, que ansiávamos desde há  muito   ;O francês, no segundo trimestre de 1980.   que podia e me encontrava disponivel.
        conhecer, quando recebemos com entusi-  Entrara discretamente a bordo, quando   No entanto, era disputado particulannen-
        asmo inesperados e aliciantes convites ou   o navio se encontrava  atracado no belo   te, entre outros, pelo oficiai de navegação.
        travamos conhecimento com outras gen-  porto de Barcelona, junto à réplica da  nau   Dava-me  prazer vê-los  juntos,  tecendo
        tes, oulros costumes, e vibramos sentida-  cm  que Cristóvão Colombo chegara  à   múltiplas considerações sobre aspectos das
        mente em  unlssono com os  portugueses   América.                        navegações diurna ou  nocturna, navios,
        das comunidades de emigrantes, que    Apenas  me apercebi  da  sua presença   marés, meteorologia, correntes, rotas marí-
        nunca  perdem  ii ocasião de nos  visitar,   quando o vi entrar na câmara de oficiais,   timas,  perigos diversos e, de um  modo
        reconhecendo e recordando,  neste  navio   acompanhado e apresentado pelo coman-  geral, com tudo o que, pouco ou muito, se
        de vela,  a presença da saudosa  Pátria   dante, que lhe servia de anfitrião.   relacionava com a ciência náutica e a difícil
        lusa, por vezes já deixada há muitos anos,   Era  um  homem alto, de rosto enérgico,   arte de bem saber navegar à vela.
        ou ainda, e finalmente, quando somos nós   rosado,  amplo, aberto,  barba  bem  esca-  Ambos se mantinham em  persistentes e
        próprios a convidar e a acolher simples e   nhoada, cabelo ralo e levemente grisalho.   profícuas conversações, durante horas a
        ocasionais visitantes, altas patentes e des-  O seu  porte,  possante e desenvolto, em   fio,  apontando e anotando sobre  mapas,
        tacadas individualidades,  transfonnando   nada fazia  prever que rondava já a oitava   folheando  livros e roteiros, cartas  náuti-
        assim o veleiro numa  real embaixada de   década de existência.          cas, difusamente espalhadas, que quase
        Portugal, deixando bem  vincada, nos que   Com  modos cordiais,  transmitindo   ocupavam  a totalidade da  larga  mesa  de
        transpuseram  o  portaló,  uma  grata   optimismo, conversação solta, franca,   refeições da  sala  de oficiais.  lntervalava
        impressão, e, para os portugueses, a espe-  calma e compassada, voz forte e bem tim-  por vezes, desde o raiar do dia até ao pôr
        rança de um dia poderem regressar.   brada, conservava persistentemente, num   do sol,  com  passeios demorados e con-
          A "Sagres"  tem  participado,  frequente-  dos cantos dos lábios rasgados, um  velho   templativas, da proa à popa, ou em senti-
        mente, em diversas, competitivas e pro-  e usado cachimbo de madeira exótica.   do contrário.
        longadas regatas, representando, pois,   Explicara-me então detalhadamente   Outras vezes, e não foram  poucas, sur-
        um símbolo vivo de uma  empenhada    que, durante várias décadas, velejara, de   preendia-o SÓ,  deliberadamente só, espe-
        continuação e difusão da arte de navegar   lés a lés,  pelos cinco oceanos,  viajando e   cado  na  tolda  ou  no convés, contemplan-
        dos portugueses.                     comandando veleiros de menor ou maior   do profundamente a vastidão do mar,
          A sua  fama é grande, gozando de reno-  tonelagem.                     olhos fitos no horizonte, em ar de medita-
         me  internacionalmente  reconhecido, de   Contava-se, segundo ele, entre um dos   ção e diálogo  mudo,  cheio de segredos
         tal modo que muitos procuram por todos   poucos comandantes  vulgarmente apeli-  imperceptíveis e indecifráveis.
         as meios nela  navegar, por escasso tempo   dados de Cap-Horllier, designação france-  Pela  minha  parte,  tentava  não o inter-
         que seja.                           sa aplicada aos navegadores que ousaram   romper e, da  forma  mais discreta  possí- ,
                                                                                     REVISTA DA AItM"OA •  NOVEMBRO 92  21
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